
01 Oct Por que é preciso escutar as crianças?
Adriana Friedmann é doutora em Antropologia, mestre em Educação e pedagoga. Desde os anos 80, atua como pesquisadora em instituições de educação e cultura.
Criadora e coordenadora do Mapa da Infância Brasileira e do NEPSID (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento), desenvolve pesquisas com crianças, formando especialistas na escuta de crianças. Nessa entrevista exclusiva, ela explica o que é escuta de crianças, a partir da sua linha de estudo e porquê precisamos escutá-las.
Em que consiste a escuta das crianças e como esse conceito se concretiza na prática?
O que é essencial na escuta das crianças e que armadilhas envolvem esse processo?
Essencial é entender que cada criança tem um temperamento específico, uma singularidade, saberes e valores trazidos do seu núcleo familiar. Entender que as crianças já têm um conhecimento que, geralmente, nós desconhecemos. Respeito é essencial: pela privacidade das crianças, pelos seus tempos, pelos seus ‘tesouros’, segredos e emoções. As crianças estão sempre em processo e não é pelo fato de um dia, ou em determinado momento, agirem de uma certa forma, que logo depois elas não irão se mostrar ou comportar de outro jeito. Uma das mais preocupantes ‘armadilhas’ é a do adulto se pautar pelas suas próprias expectativas ou referências de ‘normalidade’. E, assim, acaba se fechando, comparando cada criança com seus próprios padrões. Escutar é abrir-se para o desconhecido, para aquilo que irá nos surpreender. Outra armadilha tem a ver com o impulso do adulto fazer mil e uma perguntas para as crianças: nem sempre o que elas respondem corresponde ao que realmente estão sentindo. As crianças, do lugar da sua ‘esperteza’ acabam muitas vezes respondendo aquilo que o adulto quer escutar. Escutar não tem a ver com perguntar. Outra armadilha é confundir o que é da criança e o que é do observador: ao nos conectarmos com o outro, acabamos espelhando nossas emoções ou vivências, tanto no que diz respeito ao que já passamos como crianças, quanto às emoções – positivas ou negativas – que possam aflorar na hora de estar com as crianças. Por isso, é importante entender que escutar crianças e conhecê-las não acontece em um único encontro. Outra armadilha é ignorar o contexto sociocultural no qual cada criança está inserida: este tem imensa influência nos seus comportamentos.
Em que aspectos as crianças podem contribuir na construção de políticas públicas?
Num contexto contemporâneo onde vivemos cercados de ruídos (visuais, sonoros, tecnológicos, etc), muitas vezes em detrimentos dos diálogos, das boas conversas, como priorizar a escuta das crianças?
Temos imenso desafio a esse respeito. Criar tempos e espaços na família, na escola, na comunidade, para deixar as crianças mais autônomas, em contato com espaços mais naturais – de preferência – e com diminuição de estímulos artificiais; ou seja, proporcionar, mesmo nos cotidianos acelerados, pausas para que as crianças vivam suas infâncias e os adultos possam fazer essas escutas. Sempre a partir dos movimentos e escolhas espontâneas das crianças, pois é a partir dessa espontaneidade que elas se mostram na sua essência, quem realmente são e o que estão vivendo, sem interferências.
Diante das múltiplas infâncias, como fazer uma escuta qualificada, que resulte em participação social de/para todas as crianças?
Que infâncias têm sido escutadas e quais não são? Por quê? Queria saber um pouco mais sobre o silenciamento das infâncias.
Estamos em um momento histórico que só está começando, no que se refere ao tema da escuta de crianças e à consciência sobre sua importância. Assim, este tema e esta consciência, por estarem nos seus primórdios, ainda estão sendo conhecidos e assimilados. Precisamos compreender que crianças se manifestam todo dia, toda hora. O que não acontece é o adulto estar aberto e ciente dessas vozes infantis. Então, pensarmos em quais infâncias têm sido silenciadas não tem a ver necessariamente com grupos sociais ou culturais determinados. Vejo um silenciamento maior nas escolas que, por terem o compromisso de seguir currículos pré-estipulados, não têm, em geral, a possibilidade de criar tempos e espaços para as escutas acontecerem. Mas é claro que depende muito de cada escola e de cada educador. Espaços em que os pais tecem expectativas e pressionam por ‘resultados’ também acabam silenciando as infâncias e atropelando, de certa forma, processos, manifestações e potenciais individuais. Porém, as escolas são os espaços mais interessantes e potentes para escutar as crianças! Há um árduo e desafiador caminho a esse respeito que requer orientação e conscientização dos educadores. Infâncias silenciadas – eu diria não escutadas -, mas que na verdade continuam a se manifestar – estão em abrigos, em núcleos familiares mais repressores, em propostas pedagógicas totalmente direcionadas, em situações de violências cotidianas de todas as ordens. Infâncias silenciadas tem mais a ver com a formação e consciência dos adultos que com elas convivem do que com contextos específicos ou sócio-econômicos ou culturais. Porém, a influência sócio-cultural cria tendências para estes silenciamentos existirem ou não.
Como a escuta ocorre, ou não, no âmbito das políticas públicas na realidade brasileira? Como isso se concretiza na prática?
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