O que cria o brinquedo é o brincar

27 Aug O que cria o brinquedo é o brincar

Antes da quarentena, quando a rede de cuidados do meu filho não era somente formada por seu pai e sua mãe, nos períodos em que eu era o responsável por cuidar dele, buscava preencher nosso tempo conjunto com experiências extraordinárias. A existência é algo muito incrível e poder apresentar isso para alguém é um grande privilégio. 

Evitando gastar muito, estava sempre à procura de exposições, parques, praças, escavadeiras, betoneiras, luzes e brinquedos em promoção. Confesso que comprei mais brinquedos do que gostaria. Não sou de comprar muitas coisas. Muito, para mim,  não se compara ao MUITO de muitos pais por aí, mas confesso ter cometido pecados ecológicos com a paternidade. Mas é que os brinquedos… ah, os brinquedos realmente pareciam ser itens básicos de sobrevivência!

Bom, isso até chegar a quarentena e eles se tornarem, num piscar de olhos, artigos obsoletos e dispensáveis.

Criança brincando na areiaNa quarentena acabaram os estímulos externos, como parques e praças, e também não existe mais tempo nem dinheiro pra adquirir uma quantidade de brinquedos que daria conta de preencher a eternidade que é um dia inteiro cuidando de uma criança pequena. Este novo normal mostrou pra mim os limites dos brinquedos comprados. É muito tempo dentro de casa para que eles permaneçam espetaculares.

Foi aí que começamos a elevar à máxima potência algo que já tínhamos como prática: a ideia de que o que define o que é um brinquedo é o brincar. Quando passou a existir mais tempo do que brinquedos, os brinquedos oficiais se tornaram os únicos objetos da casa defasados, sem graça. Para eles voltarem ao jogo, tinham que ser repensados e assumir novas funções. Neste contexto, as caixas, sucatas, objetos de cozinha e materiais de escritório assumiram papel fundamental.

Mas ainda havia um problema, que era a falta de tempo para construir novos brinquedos a partir do que tínhamos em casa.

Em todos os instantes em que não estou cuidando do meu filho tento dar conta do meu trabalho, da louça, da privada e todas as outras demandas do mundo. Não daria para construir os brinquedos que gostaria, bonitos, decorativos, instagramáveis. Mas, novamente, a escassez proporcionou novas reflexões. De nada adianta construir os brinquedos dos seus filhos se for pra reproduzir a mesma lógica dos brinquedos comprados. Estamos acostumados com produtos prontos, acabados, feitos para cumprir uma função específica. O brinquedo perfeitinho é pra quem? A estética de produto pronto, de mercadoria, é uma exigência da criança ou dos pais?

Os brinquedos do filhos talvez digam mais sobre os pais do que sobre as crianças.

Assim começamos a construir nossos brinquedos-instalação com o que tínhamos e no tempo que dava. De ferramentas, somente tesoura e fita adesiva. Os brinquedos se tornaram infinitos e pararam de quebrar, passando apenas a transformar-se, uma vez que não possuíam mais forma definitiva e correta. Talvez já não existam mais brinquedos ou talvez não existam mais coisas já que tudo virou brinquedo. Brinquedos são objetos enfeitiçados pelo brincar.

Fotos pés e folhasEspero que este processo de brincar e construir brinquedos, com o que aparecer na frente, ajude a fazê-lo entender que assim também é o mundo. Não espere nada pronto, tudo ainda está por fazer e tudo sempre poderá ser transformado. Quando alguém disser “é assim”, troque por “está assim”. A vida é sempre um beta-teste e nós sempre seremos um protótipo inacabado. Mesmo quem segue se aperfeiçoando  jamais terá a oportunidade de voltar no tempo para aperfeiçoar sua biografia. Os vexames da adolescência permanecerão em nossa história, restando rir ou até nos orgulhar. Assim também são nossas cidades, objetos, escolas, política: Tudo é protótipo, versões em constante aperfeiçoamento. Não se engane com colunas de mármore e torradeiras de inox. O mundo é como o papelão e o isopor, como brinquedos de encaixe e massinha. A gente monta e desmonta, cola e descola. 

Mais importante ainda é saber que, mesmo sem desmontar e remontar, uma coisa pode ser muitas, como aquela nuvem que ora parece um anjo, ora uma privada. Como nosso coador que se descobriu capacete, o vaporizador que virou vulcão. Aquela árvore ali é a casa daquele pássaro, a comida daquele outro, a sombra daquela casa, o mictório daquele cachorro e também é o seu trepa-trepa preferido, né? Nossa casa já foi muitas casas nestes meses! E eu, e você? Somos tantos e tantos ainda estão por vir! Na verdade, nós não somos… Nós estamos! 

Filho, nossa cidade parece horrível mas, na verdade, ela também é linda às vezes e, quem sabe, não pode se tornar ainda mais bonita? Você me ajuda? Tudo que está ao nosso redor foi criado por alguém, fora aquele cachorro, aquela árvore e o céu. Se bem que já me disseram que alguém também os criou. Isso eu não sei, mas o resto eu tenho certeza que foi criado pelo bicho humano. Logo, se a gente não gosta, é nossa culpa também!

Por isso, filhote, pegue esta fita crepe e vamos dar um tapa naquela terceira bolinha depois daquele sol.

Barão di Sarno é designer, músico, artesão e escritor. Coordena projetos experimentais que se conectam à sociedade em busca de soluções para desafios contemporâneos.

* A opinião retratada no texto não reflete necessariamente do programa Criança e Natureza