De quem estamos nos protegendo, e protegendo as crianças?

A psicanalista Ilana Katz ajuda a jogar luz sobre alguns de nossos comportamentos e medos

02 Jul De quem estamos nos protegendo, e protegendo as crianças?

Ilana Katz, psicanalista de orientação lacaniana, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem refletido cotidianamente sobre a cidade e o país em que vivemos. Mais especificamente, sobre como o nosso modo de nos organizarmos geográfica e socialmente afeta os laços que constituímos e as nossas experiências. Sobre como forjamos diferentes infâncias e como temos transmitido, às crianças, as nossas percepções. 

Não são necessariamente reflexões prazerosas ou fáceis de ouvir. Mas se fazem urgentes e necessárias se quisermos, de algum modo, começar a mudar. Nesta entrevista, Ilana, que é doutora pela faculdade de Educação da USP e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Psicologia da USP, compartilha algumas de suas observações. 

Por Carolina Tarrio

Se a infância é uma construção de cada época, de cada sociedade, que infância estamos vivendo hoje? 

Eu acho um crime ético, em nossos dias, falar da infância como se fosse uma só. É muito difícil imaginar que no Xingu, numa periferia de São Paulo ou em uma cidade do interior se tenha a mesma infância. O tipo de relação das pessoas entre elas, e com o seu entorno – e aí entra a natureza –, define a experiência de  infância que se vai ter. Mas uma das coisas que mais me impressiona hoje é ver como a gente consegue proteger uma criança da outra, como se, do ponto de vista do rico, uma criança colocasse a vida da outra em risco. Uma pesquisadora do IP/USP encontrou várias manchetes com o seguinte teor: “Menor assalta adolescente”. Como se traduz isso? Uma criança preta e pobre assaltou uma criança branca, em um bairro rico. Em nossos dias, a experiência do que é a infância está absolutamente atravessada pelo corte de classe social, que se sobrepõe à ideia de infância. Mesmo uma criança urbana, do morro do Rio, é diferente de uma de Ipanema: o acesso à natureza e ao espaço público que cada uma tem é diferente, o tipo de oferta, de proteção e tutela que cada uma tem é diferente. O corte de classe se impõe. Isso não nos exime nem impede de pensar sobre o emparedamento da infância ou da escola. Mas tendo a pensar o seguinte: a gente se coloca dentro, e coloca os outros para fora. E o grande critério dessa separação é a nossa ideia de segurança. Então cabe perguntar: o que entendemos como segurança? E que risco o outro nos oferece? A ideia de risco define muitos movimentos e políticas. A ideia de risco tem nos levado a esvaziar ruas e espaços públicos.  

Por que é importante ocupar o espaço público? 

DSC_2928Porque é nele que você se expõe à possibilidade do encontro com o outro, a experiências diferentes de viver. Que você tem a oportunidade de dividir o espaço com quem é diferente. É na relação com o espaço público que garantimos a experiência de comunidade e a defesa do interesse público. Tem uma palavra que vem sendo muito utilizada, tanto nas escolas, quando se trata de uma criança com deficiência, quanto na vida pública, que é a de ‘inclusão’. Mas, pensando no termo, se você inclui alguém, está partindo do princípio de que o lugar te pertence, e que você está ‘aceitando’ ou ‘colocando alguém para dentro’. Isso corrompe a própria ideia de público, a ideia de que o outro, seja ele quem for, tem tanto direito quanto eu de circular pelo espaço. Em São Paulo, vem sendo cada dia mais recorrente desviar de pessoas espalhadas pelo chão, vivendo nas ruas. Eu me pergunto: de quem é o lugar? E que tipo de loucura estamos vivendo para desviar de corpos pelo chão e seguir como se não percebêssemos isso? Tem uma cisão que se instala: eu sou capaz de caminhar desviando de humanos. Isso é de uma violência atroz. E é claro que é muito mais violento ser a pessoa que está no chão, mas é violento também ser essa pessoa que desvia de corpos, como se não fossem pessoas. A gente desenha nossas vidas tendo de se haver com saber que tem gente que morre de frio. Eu sou judia, e aprendi com o judaísmo um de seus princípios fundamentais, o Tzedaka: crescemos quando fazemos pelo outro e quando tiramos do que temos para dividir. É preciso estar aí para o outro, qualquer outro. Isso não tem nada a ver com caridade. Porque a caridade é um exercício de poder no qual quem da decide como, quanto e até quando da. E isso é ainda diferente de uma política pública. Precisamos de políticas públicas que pratiquem o cuidado, que possibilitem a incontornável presença da alteridade. Que permitam a existência da alteridade que aparecer, que houver, não a que eu escolher, em espaço controlado. Se não conseguirmos inventar uma maneira de construir essa experiência da alteridade na infância, vamos ficar cada vez mais emparedados.

Por que é importante conviver com o outro? Com o diferente?

 A constituição de qualquer sujeito se faz com o outro. Não nos constituímos como seres humanos a não ser em confronto e contato com o outro: ele é fundante. A nossa criação depende de um outro. E há, por exemplo, várias experiências do pós guerra que demonstraram que crianças que não interagem, que são excluídas do campo do outro, por mais que tenham água e comida, morrem. Portanto, a alteridade é constituinte. E o tipo de relação, a diversidade e a qualidade das relações que estabelecemos na infância, muda o tipo de laços que somos capazes de construir depois. Se apenas com a minha mãe eu me sinto segura, eu terei um tamanho de mundo. Se a alteridade puder incluir a professora, os amigos da escola, as pessoas do meu bairro, isso amplia e redimensiona o meu mundo. Quanto mais restrito for o mundo, mais essa fantasia de segurança precisará deixar gente para fora. A ideia neoliberal de que a segurança está entre iguais, na convivência com os idênticos, no corpo controlado, é falha. Não é ‘inclua seu amigo com deficiência na escola porque ele precisa, ou porque você vai ser legal e generoso.’ Não é sobre você. Ou é também, mas é ‘olhe para o seu colega e, se ele andar mais devagar, você precisa esperar. Não para ser legal, mas porque a sala é tão dele quanto sua.’ Teríamos de apontar em outra direção: a segurança é a construção do comum. Temos de pensar a infância na construção de comunidade, e de uma comunidade, quanto mais diversa, melhor. Isso desempareda.

Como incluir o outro na nossa vida?

Olha, esse não é um esforço intelectual fácil, e, na experiência, é ainda mais difícil. Existem alguns níveis e esferas de responsabilidade: o individual, o institucional (a escola, por exemplo), e o Estado. Falando do campo individual, é preciso haver um gesto inaugural em direção ao outro: é preciso coragem. É preciso se abrir para saber com o que você está lidando e do que você tem medo. A nossa resposta, nesse sentido, tem sido o emparedamento. Essa é a pior resposta possível. Também temos que nos responsabilizar individualmente pelo tipo de transmissão fazemos às crianças sobre o outro: alguém que está na rua é alguém a quem você se dirige e que trata como humano? Ou alguém de quem você desvia, que você invisibiliza? Porque pode ser insuficiente, mas quando você retira a invisibilidade do outro e lhe da o estatuto de humano, você convoca essa pessoa de outro jeito, cria outro laço. É diferente se colocar frente ao outro com medo ou com curiosidade. Agora, um outro exemplo: a Organização Mundial da Saúde soltou uma série de recomendações para combater a obesidade infantil. Entre elas, a restrição de tempos de telinha por faixa etária. E vamos combinar que estar na frente de um ipad ou celular é o cúmulo do emparedamento. É mais do que estar dentro de casa: é estar sozinho dentro de casa. Agora, de quem é essa responsabilidade? Porque a única coisa que se produz é culpa quando só os pais são responsabilizados por isso. Essas crianças, muitas vezes, não têm aonde ir. E de quem é a responsabilidade? Como cuidamos dos espaços e da segurança para que as crianças possam sair? A responsabilidade pela infância não é individual, não criamos seres humanos fora do laço social. Então, é necessário que pensemos e atuemos de maneira comunitária. Que um lado, o individual, pressione o outro, o coletivo, e o governamental. Para que possamos nos responsabilizar individualmente tem de haver um regramento e também temos de pressionar a esfera pública para que o espaço e o interesse públicos estejam em primeiro lugar.

Afinal, do que temos tanto medo?

Boa pergunta. Acho que temos medo do que criamos e do que colocamos para fora. O psicanalista Christian Dunker propõe pensarmos a diferença entre um condomínio e a experiência de comunidade. Porque eu subo um muro, separo, e produzo um resto. E esse é o resto que te ameaça. O resSampape_nultado do emparedamento é que, aquilo que deixamos para fora, volta, e passa a ser algo com o que temos de lidar. O que deixamos para fora? E por que achamos que vamos poder responder sempre pela via da exclusão? Do encarceramento? Essa resposta já falhou! Aprendi o que é medo com um menino de 7 anos, que tinha muito medo de avião. A família dele ia fazer uma viagem para um parque aquático que ele queria muito conhecer, mas precisava pegar avião para chegar lá. Ele chegou a cogitar não ir mas, depois de várias sessões, um dia me falou: “Eu entendi que, quando eu fico com medo, parece que eu já sei o que vai acontecer. É como se eu falasse: ‘o avião vai cair, eu sei o que vai acontecer’. Mas eu não sei!” Então, é exatamente isso! O medo antecipa um cenário e você da como certo algo incerto. Mas a vida é incerta, e temos de lidar com isso, lidar com os riscos. Tentar criar uma experiência de segurança inconsistente, tentar inventar certeza onde não existe, é criar um sintoma: esse é um comportamento fóbico. Temos de começar a perguntar: o que é nós? Quem é o outro? O que é segurança? Temos de perguntar a nós mesmos: o que eu estou disposto a perder para viver com o outro? Do que vou abrir mão para estar com o outro e o que vou ganhar? 

Pensando nas crianças, por momentos nós as superprotegemos e, por outros, lançamos sobre elas a responsabilidade pelo futuro do planeta. Como equilibrar essa balança?

Quando pensamos no que queremos para os filhos, estamos dando consistência a nossos ideais, no corpo deles. E isso pode cair como um peso: alguém ter de dar conta do ideal do outro. Acontece que somos muito competentes na construção do ideal e muito incompetentes na experiência de suportar a perda desse ideal. Essa é uma conta que a infância paga. Vejo pais que sofrem terrivelmente porque o filho ficou de recuperação, porque engordou, ou porque não tem amigos: mas de que ordem é esse sofrimento? É o sofrimento de quem acompanha e sofre o sofrimento daquela criança ou é um sofrimento que consolida uma perda com relação ao que eu imaginei ideal? Quando dizemos: “Eu só quero que meu filho seja feliz”. Isso lá é tarefa fácil? Desde quando? Ser feliz não é um estado, é um instante! Então, a criança que não é feliz, ou não expressa isso, fere o meu ideal narcísico de ser um pai capaz de oferecer isso para ela. Isso tem um peso, e constitui uma perda no laço. Desse jeito, o máximo que você conseguirá é se sentir culpado. Temos de fazer uma passagem da culpa para a responsabilidade. Claro que somos responsáveis pela vida das nossas crianças, dos nossos filhos e os da nossa comunidade, mas ser responsável é incluir a perda no jogo, que é diferente da culpa. Me parece que perdemos o conectivo “com”: a gente faz coisas para/por/em nome das crianças. Mas o que estamos dispostos a fazer COM elas? O que você topa perder do seu tempo para fazer com elas? 

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