Quando a natureza é a escola

17 Aug Quando a natureza é a escola

A experiência de uma educadora que, duas vezes por semana, media o encontro de crianças, para brincar e viver experiências na natureza

Desde 2015, Fabrícia de Carvalho, facilita o encontro de crianças, de dois a sete anos de idade, para brincarem e vivenciarem experiências diversas na natureza. O projeto, intitulado Nosso Quintal, acontece duas vezes por semana, na pista Cláudio Coutinho, um lugar de floresta com vista para o mar, que fica na Urca, no Rio de Janeiro.

O projeto nasceu do desejo de duas mães de conectarem os filhos com a natureza e com outras crianças. “De início, elas até pensaram em substituir a escola formal por esses momentos, mas ele acabou se tornando uma atividade extra. E após algumas entrevistas eu fui escolhida para acompanhar as crianças nas incursões pela natureza”, conta Fabrícia. Abaixo, ela revela o que aprendeu observando os pequenos e a si mesma nesse ambiente tão rico para a aprendizagem.

Como foi ter a natureza como ‘sala de aula’?

Foi mágico, cheio de desafios e encantador ao mesmo tempo. De início, íamos muito para o Forte da Urca, um lugar de praia, onde todos sentiam-se mais seguros, mas a medida que fomos ganhando confiança, pais e educadores, passamos a nos encontrar na Pista Cláudio Coutinho, um espaço de floresta que nos permitia descobrir diversas trilhas, escalar pedras, subir em árvores, viver inúmeras aventuras e entrar em contato com uma riquíssima variedade de fauna e flora, sem falar na lindeza de vista que temos para o mar. Tem uma pedra grande que hoje subimos regularmente, mas no começo eu não deixava, achava que podia ser perigoso. Vejo que é importante estar ali, experimentando seu corpo no lugar, ver que você consegue subir sem cair para, a partir dessa experiência vivida, seguir. Porque você dificilmente consegue levar alguém aonde nunca foi. A natureza oferece isso. O Nosso Quintal já caminha para os seus quatro anos de existência, o que nos permitiu ampliar imensamente a nossa zona de conforto, e isso já traz uma segurança muito maior para os pais que estão chegando.  

_DSC2346O que a natureza ensina?

A natureza traz um fluir diferente para as crianças, mais relaxado. Esses encontros eram momentos em que as crianças podiam escolher entre olhar o céu e contemplar, ou correr se precisassem. E acabavam servindo muitas vezes para refletir ou elaborar experiências. Nós somos constituídos de natureza, por isso ela é para nós um lugar de apaziguamento, de acolhimento. Em sala de aula eu sinto uma tensão muito maior. Agora, só na natureza as crianças encontram isso? Acredito que não, uma escola que tenha sensibilidade, conexão, pode oferecer isso. E as crianças encontram esses caminhos: em pequenos cantos, no recreio, por exemplo, talvez não tão profundamente, mas elas levam isso dentro. De todo modo, estar no mato, com o mínimo de interferência, e deixar as crianças encontrarem seus caminhos de brincadeira é algo mágico. A natureza traz muitas possibilidades: momentos de contemplação, de deitar na terra, entre folhas, olhar sem tempo para o mar. Outras vezes temos oportunidade de correr livremente por longas distâncias, de escalar pedras e percorrer trilhas que nos desafiam. Vivenciamos a oportunidade de observação e percepção das plantas, dos animais e de nós mesmos, que somos constituídos pela natureza.

Você propõe atividades?

Eu já propus mais, hoje tento interferir o mínimo. Estou lá para ouvir e ajudar no que for preciso. As crianças já têm tantos estímulos verbais, visuais, elas já são tão questionadas o tempo todo… Nossos encontros servem para elas mesmas acharem as soluções para o que querem, para elas poderem acessar suas próprias respostas. Eu estou ali, com muita atenção, trocando, com escuta e olhar, mas entendo que as crianças são capazes de construir seus espaços, suas brincadeiras, suas percepções de mundo. E isso é muito potente. Uma criança conectada com a natureza, que tem esse tempo de calma, de se expressar a partir de si mesma, tem grandes possibilidades de ser um adulto mais centrado, que saiba se ouvir. Estou lá para trocar, ofertar, mas principalmente para garantir, com uma escuta sensível, amorosa e de corpo presente, a segurança de um tempo e espaço de livre brincar no contato com a natureza.

Como vocês lidam com o perigo e os riscos?

Crianças têm um corpo em expansão, que precisa de liberdade de movimentos, e a natureza oferece espaço, desafios. Numa sala, o corpo é muito mais cerceado. E tem sempre o medo de cair, de machucar etc. Existe um apavoramento muito presente nos ambientes escolares, e também quando elas estão com os pais. Em quatro anos, nós nunca tivemos um acidente, nada mais sério do que um joelho ralado. Mas fomos construindo nossos limites: quando ir mais longe? O que eu tenho habilidade para fazer? E eu, como responsável, quanto consigo deixar? As crianças estão ali na floresta, presentes. Elas prestam atenção e vão adquirindo essa consciência: de seu próprio corpo, de seu limite. Concretamente, no corpo, a gente vê como crianças, antes tímidas ou com medo, em pouco tempo se sentem à vontade, e como elas ganham destreza e como vão construindo brinquedos e brincadeiras com paus, folhas, pedras, como a imaginação ganha espaço. O corpo ganha destreza de movimento, aparecem “garrinhas” e jeitinhos para escalar pedras, subir em árvores, e explorar trilhas. A imaginação vai longe e tudo tem serventia para brincadeira: terra, gravetos, folhas, pedra, fogo, chuva, poças de água, raios de sol, a lua, os animais, tudo vira brinquedo.

_DSC1547 (1)Como fazer para aproximar a natureza do dia a dia?

Me parece que o caminho é pelo professor, pela escola, por sensibilizar os adultos. Sei que temos uma realidade muitas vezes de espaços apertados, inadequados. Seria incrível uma arquitetura que contemplasse corpo, sol, com outra concepção nas escolas. Uma opção possível quando isso não está dado é sair, visitar uma praça ou parque próximo. E também levar a natureza para dentro: oferecer terra, água, pedras, sementes, argila, preparar um ambiente com natureza. Desse jeito, a natureza passa a ter significado, não é algo distante. Ela passa a existir e esse “corpo vivido”, essa experiência tátil, de odor, de cor, se materializa. Assim, as crianças passam a prestar mais atenção nela, a ficar conectadas.

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