A cidade como território educativo

06 dez A cidade como território educativo

O desenvolvimento urbano tem promovido um cotidiano cada vez mais preenchido por atividades que enclausuram e privatizam a infância, controlam seus corpos e ações e sistematizam seu tempo livre. Nesta entrevista, a arquiteta e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRJ, Giselle Arteirofala sobre como este modo pode refletir na concepção de espaços educativos que privilegiam ambientes internos.

Por Raika Julie Moisés

Atualmente, mais de 80% da população brasileira vive em áreas urbanas e as crianças não fogem a essa realidade. A escola torna-se muitas vezes o principal ambiente para exercício do livre brincar. O que define um pátio escolar e quais os benefícios que ele proporciona para as crianças, principalmente quando participam da sua concepção?

Com o crescimento urbano e o adensamento das grandes cidades pressionando os espaços livres (não edificados), principalmente em territórios populares e regiões com menor poder aquisitivo, o pátio acaba sendo uma das únicas possibilidades de “desemparedamento da infância” e se constitui como experiência muito importante para o desenvolvimento e a aprendizagem. Alinhados com as ideias dos pedagogos Francesco Tonucci e Manoel Sarmento e da arquiteta e professora Mayumi Souza Lima, reconhecemos no projetar COM as crianças uma maneira de fugir da visão “engessada” e reducionista do adulto sobre como devem ser os espaços para a infância: despersonalizados, com excesso de funcionalismos, controlados, pouco flexíveis e com muito pouco da identidade das crianças.

Há alguma relação entre a forma como as cidades têm sido pensadas e o fato de muitas escolas não possuírem, sequer, nenhum tipo de ambiente externo e naturalizado, com qualidade, para as crianças?

O desenvolvimento urbano tem promovido um cotidiano cada vez mais preenchido por atividades que enclausuram e privatizam a infância, controlam seus corpos e ações e sistematizam seu tempo livre. A cidade vem perdendo sua vitalidade e possibilidade de desfrute do espaço aberto público. Este modo de vida “enclausurado” pode refletir na concepção de espaços educativos que privilegiam ambientes internos. Em muitas escolas, espaços livres são meras “sobras” de terreno, com pouca qualidade e pouca reflexão sobre seus equipamentos, e quase sempre precários em termos de áreas verdes. Temos a tendência de entregar “objetos prontos”, industrializados, em vez de áreas externas orgânicas, e do uso de materiais naturais. Ainda concebemos espaços para as crianças de forma funcionalista, sem margem para a criatividade, o inacabado ou o imprevisível.

 Crianças em uma mesaÉ possível pensar e realizar pátios escolares de forma menos idealizada? Que ações de baixo custo podem otimizar seu uso?

Acredito que os pátios podem ser menos “programados”. Pensamos em “lugar pra isso ou aquilo” – aqui é para correr, aqui é para sentar ou escorregar – quando sabemos que a capacidade criativa da criança irá ressignificar ou transgredir usos pré-definidos. Deixar elementos que não tenham uma função estabelecida e que possam estimular a imaginação – cordas, redes, palets, pequenos troncos, água, diferentes texturas e desníveis de piso (grama, terra, pedriscos), árvores, arbustos etc. – trará desafios e riqueza ao desenvolvimento infantil.

Quais as vantagens de considerar os pátios escolares como parte dos sistema de áreas livres das cidades? E quais barreiras, ou crenças, precisam ser superadas para que as escolas implementem pátios naturalizados associados aos espaços públicos urbanos?

Precisamos romper a hegemonia da escola como contexto único educativo, sem contato como o entorno. É preciso incluir a cidade como território educativo, alargar fronteiras e proporcionar o desemparedamento da infância. E pensar esse movimento como via de mão dupla: “saltamos o muro” da escola, mas também permitimos que a comunidade adentre seus espaços livres. A questão da segurança ainda é uma grande barreira, mas acredito que o caminho é o diálogo, a participação em oficinas, não só para educadores mas para toda a comunidade escolar – gestores, pais, crianças, vizinhança.

Como o poder público (incluindo as escolas não-privadas), as famílias e a comunidade podem contribuir para que haja mais pátios escolares naturalizados e espaços públicos que possam ser usados pelas instituições de ensino?

A construção desse pensamento deve ser coletiva. Não depende somente da vontade dos educadores ou dos arquitetos, mas envolve políticas públicas e a sociedade civil. Precisamos pensar em ações mais sustentáveis, ampliar o conhecimento e a educação sobre meio ambiente e sobre a importância do contato com elementos naturais, na necessidade de arborização para melhorar a qualidade ambiental, e em resolver a questão do lixo. As “ilhas de calor” têm se ampliado nas grandes metrópoles pelo excesso de áreas pavimentadas que dificultam a drenagem natural do solo e contribuem para o aumento da temperatura. Soluções que privilegiem o uso de elementos naturais e espaços livres serão sempre muito bem-vindas. Lugares como a Cidade do México, por exemplo, que tem uma qualidade do ar muito ruim, têm tido um cuidado especial com as áreas verdes nos espaços livres públicos.

Crianças brincandoOs pátios escolares e espaços públicos, em geral, levam em conta o tema da acessibilidade? Como isto é pensado?

Existem normas técnicas reguladoras para garantir a acessibilidade aos edifícios, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. A NBR 9050 estabelece diretrizes para o desenho universal nos ambientes, reduzindo as barreiras arquitetônicas. Um desafio é adaptar edificações e espaços livres anteriores às normas. As escolas do século passado, por exemplo, não foram concebidas para a inclusão, e muitas vezes sacrificam espaços livres para implementar uma rampa, que requer uma área de grandes dimensões.

Em 2020 acontece o XXVII Congresso Mundial de Arquitetos UIA2020RIO. De que forma ações como essa podem beneficiar a concepção dos espaços públicos urbanos para que mais pessoas, inclusive crianças, possam participar da concepção e transformação das cidades? 

Acredito que esse fórum seja um importante locus  de discussão sobre o habitar da infância na cidade. Embora o congresso seja bastante oneroso – o que dificulta participação de estudantes, uma das reivindicações das universidades – os eventos preparatórios realizados em 2019 e os que acontecerão em paralelo constituem oportunidades de fala e diálogo que darão visibilidade ao tema. Realizamos um desses eventos preparatórios em 2019, o II Workshop Internacional “Desafios dos Projetos Locais: Construindo Espaços Juntos”. Foi um desdobramento da pesquisa integrada do Grupo Ambiente-Educação, que coordeno, com o grupo SEL-Sistema de Espaços Livres, coordenado pela Prof. Vera Tângari, também do PROARQ-FAU-UFRJ. O objetivo foi promover a discussão sobre a produção contemporânea da cidade em condições de desigualdade, fragilidade e conflito. Um processo participativo no bairro de Manguinhos, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, gerou reflexões sobre as atribuições e posturas de estudantes e profissionais de arquitetura e urbanismo na construção de uma cidade mais justa e inclusiva, que dê voz e visibilidade aos grupos sociais que normalmente não são considerados como agentes produtores e transformadores da cidade e da paisagem, como a infância e a juventude. 

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