“A natureza é um jardim sensorial incrível”

07 jan “A natureza é um jardim sensorial incrível”

Em 2002, Isabela Abreu iniciou um trabalho de contato e imersão na natureza com pessoas com deficiência, realizando atividades ao ar livre com jovens e adultos. “Estar em contato concreto com a natureza, tornando tangível o que ouvem nas histórias e nas experiências de muitos que enxergam, traz uma ampliação de repertório e vivência que contribui muito para o seu desenvolvimento integral”, explica Isabela, que atualmente desenvolve a iniciativa Natureza de Criança que, além de experiências inclusivas, organiza atividades infantis na Amazônia e nos Lençóis Maranhenses, e mantém atividades que acontecem com regularidade nos parques da cidade de São Paulo, onde mora atualmente.

Por Raika Julie Moisés

Em novembro do ano passado, uma vivência imersiva na Mata Atlântica, mais especificamente no Legado das Águas, reuniu 22 crianças com e sem deficiência visual para experienciarem e trocarem percepções na natureza, através de trilhas, caiaque, banho de rio e brincadeira. As crianças foram acompanhadas pela família e cinco guias especialistas em inclusão na natureza, incluindo uma médica e seis estafes para apoio logístico. “Inicialmente, os pais estavam receosos, pois a maioria nunca havia entrado em um rio ou remado em um caiaque. Mas a energia das crianças contagiou a todos. Foi um momento muito lindo de vivenciar, quebrar barreira do medo e se entregar para o novo. A experiência das crianças com e sem deficiência visual no rio foi incrível, algumas nunca tinham feito isso antes. Sempre repito: o brincar livre na natureza tem um grande poder transformador, é só ter um olhar para acessibilidade que a mágica acontece”, diz.

Confira a entrevista abaixo  para saber um pouco mais sobre o trabalho desenvolvido e como a natureza e inclusão podem caminhar lado a lado. Boa leitura!

Há mais de dez anos que ações relativas à inclusão estão presentes no seu cotidiano profissional e pessoal. Por que essa escolha e o que você tem aprendido com ela?

A escolha foi motivada pela vontade de partilhar o que eu vivia de experiências na natureza com pessoas que talvez tivessem menos acesso a esses lugares. Tinha o desejo de fazer um trabalho voluntário e entendi que ele seria duradouro se eu fizesse algo relacionado à minha paixão: estar em lugares incríveis na natureza. Comecei fazendo trilhas off-road com cadeirantes e logo depois veio a oportunidade de levar pessoas com deficiência visual para viajar. Os aprendizados são inúmeros! Um deles é constatar como estar na natureza ajuda no desenvolvimento humano. Para qualquer pessoa, com ou sem deficiência, adulto ou criança. Um outro é que só é possível, de fato, entender sobre as diferenças com o convívio. O convívio entre pessoas com e sem deficiência desmistifica ideias preconcebidas sobre o tema e nos torna pessoas mais próximas daquelas que são diferentes de nós. 

WhatsApp Image 2020-01-07 at 15.51.59Uma pesquisa encomendada pelo Instituto Alana ao Datafolha revelou que aproximadamente nove em cada dez brasileiros acreditam que as escolas se tornam melhores ao incluir crianças com deficiência. Como é a experiência de trabalhar com a inclusão para além dos muros da escola, com diferentes faixas etárias, em ambientes naturais?

O ambiente natural cria repertório de convivência. Ele traz assuntos e experiências que facilitam muito o convívio de crianças com e sem deficiência. Promovemos as experiências em dupla, sempre. Uma criança com deficiência visual cega e outra sem deficiência. E então começa uma narrativa de aprendizados que não precisam ser falados, simplesmente acontecem. Ao descrever uma cena que me encanta para o outro, encho minhas palavras de vibração e transmito  o meu olhar. A criança com deficiência visual, por sua vez, começa um diálogo interpretativo, o que entendeu, o que achou, e divide com a dupla também o que está sentindo. A natureza é o jardim sensorial mais incrível para que a inclusão aconteça. Uma explosão de sensações, cheiros, texturas, sons, tudo que pode ser compartilhado e trocado com o outro pelos sentidos. A criança sem deficiência, ao deparar-se com tudo isso, consegue ver na criança com deficiência possibilidades, capacidades, um jeito diferente de estar no mundo. Teremos adultos menos preconceituosos se a inclusão começar na infância. O convívio e a aceitação passam a ser algo mais natural.

E quais os desafios que permeiam essas atividades?

O principal desafio é elaborar um roteiro que faça sentido. É conseguir fazer tudo o que queremos em um único dia. Gerenciar equipe de staffs é outro desafio. Alinhar conhecimento e conduta entre todas as crianças. Ambientes naturais são muito acessíveis para pessoas com deficiência. A acessibilidade principal está na comunicação, na descrição e na forma como contextualizamos as atividades de forma didática e tangível. 

No que se refere às políticas públicas envolvendo o temavaral da inclusão, que mudanças você percebe ao comparar o período em que iniciou o seu trabalho com os dias atuais? E nas relações humanas e comportamentais, também houve mudanças?

Nas políticas públicas houve muitos avanços. Os projetos de produção audiovisual devem contemplar legendagem visual, audiodescrição e libras, assim como filmes exibidos no cinema. Sessões de teatro devem ter também a mesma acessibilidade. As escolas regulares vêm se preparando muito mais com recursos de tecnologia assistiva e capacitação de professores. A lei de cotas também trouxe uma diversidade expressiva de profissionais para o mercado de trabalho. Ainda há muito a ser feito mas, sem dúvida tivemos, sim, muitos avanços. Vejo nas relações humanas hoje mais abertura para esse convívio, mas ainda estamos engatinhando. Trabalho há 15 anos com palestras em empresas, e os assuntos, as dificuldades, a estranheza ainda são os mesmos. No entanto, vejo um grande movimento de pessoas, principalmente empresas e escolas, querendo entender para incluir. Isso aumentou muito. A procura pela informação para facilitar o convívio.

WhatsApp Image 2020-01-07 at 15.51.59 (1)Que dicas você daria para quem deseja desenvolver atividades ao ar livre que levem em conta a inclusão de pessoas com e sem deficiência?

Entenda bem o espaço ao qual você irá. Entenda bem o público que irá ao espaço, e que tipo de acessibilidade ele precisa. Às vezes é rampa ou banheiro adaptado, às vezes é intérprete de libras, às vezes é ter um tempo maior para desempenhar certa atividade, às vezes é a audiodescrição enfim, preparar-se antes fará com que a experiência seja mais inteira. Converse com todos os envolvidos no programa e capacite a equipe para receber seu grupo. Acessibilidade e inclusão traz benefícios para todo mundo, vale a pena apostar nesse caminho!

 

 

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