Como educar para transformar?

12 Jul Como educar para transformar?

Incluir a natureza e repensar as relações de poder são algumas das estratégias usadas por Sergio Godinho, da Escola da Serra

Sergio Godinho é diretor e proprietário de uma escola diferente: a Escola da Serra, em Belo Horizonte. Reconhecida pelo Ministério da Educação como “referência em inovação e criatividade”, oferece do infantil ao ensino médio. Inúmeras experiências nos ajudaram a caminhar até onde estamos: desde a de Makarenko, descrita na obra “Poema Pedagógico”, passando por Summerhill, na Inglaterra, a Escola da Ponte, em Portugal, a experiência do projeto Escola Plural aqui em BH… Ninguém cria do zero. Nossa missão é avançar e deixar nossa contribuição”, diz Sergio, que é psicólogo pós-graduado em educação e também tradutor. “A transformação da educação convencional passa por uma escola mais democrática, na qual a participação dos alunos seja mais verdadeira e intensa, em que os alunos tenham um grau de liberdade e autonomia muito mais amplo, e onde as relações sejam caracterizadas pela confiança e pelo afeto”, explica. Neste papo, ele esclarece algumas das ações e estratégias para alcançar esse objetivo.

 

Como a natureza se integra à proposta da escola?

A Escola da Serra fica em um terreno bem grande, em uma área central, onde antes funcionava um convento. Adolescentes no pátioAli a natureza é parte intrínseca da proposta, e fizemos o possível para manter o espaço o mais simples e natural possível. Foi engraçado que uma aluna de 14 anos, logo que entrou, disse: “Ah, se eu fosse rica, ia dar dinheiro para cimentar esse pátio!”. Eu expliquei que não era por falta de dinheiro que o pátio tinha um piso natural, e sim porque acreditávamos que poder andar descalço, em um lugar arborizado, com pedriscos e terra, seria melhor, porque cimento já tem em todo lugar. Depois de uns anos eu perguntava a ela: “E aí? Ainda quer cimentar o pátio, Carol?”, e nós riamos juntos. Você anda pela escola e vê vários meninos e meninas descalços, ou de meia, circulando por ali. No outro pátio menor, na ala da educação infantil, há poucos brinquedos tradicionais e tem desafios como corda, túnel, escalada. Ele é coberto com pedrinhas de quartzito, bem branquinhas, sobre a terra vermelha, mineral. Quando chove, as crianças cavam as pedrinhas e brincam de fazer córregos de água. As famílias também podem almoçar na Cantina da Escola com os filhos, e tem um redário se alguém quiser tirar um cochilo… No final do dia, esse pátio maior recebe um pipoqueiro, as famílias entram e confraternizam, a meninada brinca, como se fosse uma pracinha de interior… um astral ótimo de comunidade! 

Como funcionam as vivências que a escola propõe na natureza?

Durante os três últimos anos do Ensino Fundamental, levamos alunos de 12, 13 e 14 anos, durante 5 dias, para o meio do mato. CampingÉ uma região belíssima, ao lado de um ribeirão, na crista de uma montanha. São 60, 70 meninos e meninas, neste lugar que não tem nada próximo, onde não pega celular. É uma experiência extremamente forte. Para muitos deles, é a primeira vez que saem sem as famílias. Vários ficam perplexos quando veem aquele céu coalhado de estrelas que nunca tiveram oportunidade de apreciar na cidade. É também um exercício de autodescoberta, de descoberta do outro, do grupo. Porque, muitas vezes, na escola, há aquele aluno que tem mais facilidade para uma coisa, e quando você sai desse ambiente mais definido, os papéis mudam. Aquele mais quietinho às vezes se torna um cara cheio de iniciativa, uma liderança nesse outro ambiente. Você tem a oportunidade de conviver com seu colega de outro jeito, de enriquecer o olhar sobre ele. E é um lugar que exige a cooperação, não tem jeito de funcionar ali de outro modo que não a solidariedade: tem que fazer comida, catar lenha, limpar tudo, são exercícios e atividades muito diferentes da rotina da cidade. 

Como é a preparação?

A chave para que tudo corra bem é a confiança que depositamos neles, e precisamos que eles comprovem que são merecedores dessa confiança. Os alunos passam por um processo de preparação bastante longo que inclui bate-papos sobre valores e normas, bem como aulas de culinária básica, montagem e desmontagem de barracas, aulas sobre como acender, manter e apagar fogueiras, manuseio de machados e facões, primeiros socorros – para entender que acidentes podem ocorrer e que atitudes tomar. Eles têm aulas também sobre animais peçonhentos, para aprender a identificá-los, ter cuidado e respeitá-los em vez de ter medo. É uma carga significativa de conhecimento e informação. E como eles participam da experiência por três anos, vão internalizando tudo isso. Na primeira vez, é um deslumbre; na segunda eles já dominam uma porção de coisas e ajudam os que estão chegando; no terceiro ano, eles são donos do pedaço, é uma evolução muito bacana de ver. Uma experiência que transforma na sua autopercepção. Por exemplo: uma menina me disse que a experiência tinha lhe mostrado como ela era “fresca”. «Como assim?» – perguntei. “É que quando eu penso que antes do acampamento, se uma colher tinha uma manchinha deixada pela lava-louça eu não usava porque tinha nojo, e lá no acampamento eu misturava meu leite com toddy com um graveto que eu pegava no chão e tudo bem…, aí que eu vejo como era fresca!”. Eles falam também de como a vida pode ser mais simples, como precisam de menos coisas e, ao mesmo tempo, entendem que para isso acontecer eles têm de cooperar. Que viver é algo trabalhoso: a comida não brota na mesa, prontinha. Percebem que tudo o que conseguimos construir é resultado de trabalho. São ensinamentos que jamais conseguiríamos transmitir escrevendo na lousa.

Os alunos do ensino médio têm algum tipo de experiência parecida?
Sim, vamos para uma aldeia indígena. Eles continuam exercitando os aprendizados do acampamento, mas têm um ganho que é compreender essa relação com a alteridade, e o respeito aos povos indígenas. Crianças e cobrasAlgo que a educação brasileira tem de fazer, porque a quantidade de preconceitos e de estereótipos que foi vestida nos indígenas é uma coisa inacreditável! Se você perguntar a um menino de classe média da cidade o que é índio aparecem as coisas mais absurdas. Temos de contribuir para que abram a cabeça, para que compreendam que até dizer “o índio”, como se fosse uma identidade só, é uma absurda impropriedade, já que o Brasil tem 305 povos indígenas, que falam 274 línguas diferentes. Fazemos um trabalho anterior para eles chegarem com propriedade, com um olhar mais aberto e bem informado. É algo que valorizamos muito. 

Você fala da alteridade, da importância de conviver com o diferente. Mas a educação no Brasil, a começar pela divisão entre escola pública e particular, garante muito pouco disso. A escola particular tem alguma possibilidade de intervir nessa realidade?

A escola deveria ser essa instituição que amplia o núcleo familiar do aluno e o coloca em contato com o outro, para lhe dar oportunidade de se expor a visões de mundo contrastantes. Esse deveria ser o cerne, o centro de atenção da escola: preparar seus alunos para enxergar o outro como merecedor de dignidade, portador de direitos. Mas a escola brasileira não faz isso, principalmente por essa estrutura focada em Enem e vestibular, que distorce tudo, que nos faz ficar voltados para conteúdos, e cada vez mais para conteúdos menos significativos. Como se educar fosse encher a cabeça. Educar não é isso. O aspecto intelectual é apenas um, mas não o único. E os outros foram relevados a quinto plano: o desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade, da sociabilidade, da consciência física, a meta-cognição, a dimensão interior, a capacidade de interpretar a realidade e atuar de forma transformadora… isso tudo é papel da escola. Mas a escola está lá agarrada no livro didático, ensinando matéria…  

Não cabe, à escola particular, uma responsabilidade nesse sentido?

Existem muitas escolas públicas com professores abnegados e trabalhos maravilhosos, mas não adianta ser uma escola pública modelo, se esse modelo não se alastra. Pátio escolarE as escolas transformadoras, que são poucas, acabam tendo um efeito pequeno, quase nulo. Nós estamos preocupados com isso. Está no nosso projeto pedagógico um desejo de aproveitar a jornada de transformação que já trilhamos para apoiar outras escolas que queiram se transformar. Estamos investindo na sistematização do aprendizado que acumulamos para podermos servir de inspiração e referência em educação inovadora e para nos tornarmos, também, um centro de capacitação de educadores. Nossa ideia é, de início, oferecer esse “know-how” para empreendedores que queiram abrir escolas particulares a partir do zero, já com esse gene do novo. Claro que não vão ser iguais, porque educação não é hambúrguer, mas com o tempo constituirão um grupo crescente de escolas diferenciadas, e acreditamos que a escala trará uma mudança de percepção na sociedade: essas escolas deixarão de ser vistas como “exceção” passando a ser entendidas como “opção”. . Pensamos também em oferecer às escolas públicas um percurso sistematizado de mudança, ancorado em um processo intenso de capacitação dos educadores, o que poderá encurtar esse processo, que nos custou 12 anos, para um percurso de, possivelmente, apenas 3 anos. Se isso entrar em várias escolas, você começa a mudar de fato a qualidade da educação. 

Crianças na árvoreUm processo que vai ser demorado…

Tem uma pequena história que ajuda a gente a manter a determinação: Um menino chegou com um caroço de pêssego e perguntou ao pai : “Se eu plantar este caroço, quanto tempo vai demorar para ser uma árvore grande, cheia de pêssegos?” “Uns 6 anos”, disse o pai. “Ah, é muito tempo”, disse o menino, jogando fora o caroço. Então, o pai o chamou e falou: “A questão é que, você plantando ou não, seis anos passarão.” Plantemos!

 

 

 

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