No olho da rua

O que acontece quando as crianças saem da escola para experimentar seu território – e por que isso pode ser bom para elas e para a cidade?
Grupo de crianças caminha sobre mureta na beira da calçada.

18 Ene No olho da rua

Por Carolina Tarrio

Mateus Humberto e Marieta Colucci se conheceram durante encontros de grupo de estudos em educação e mobilidade que surgiu na USP, no ano de 2012. Ele é engenheiro civil e ela arquiteta e urbanista. Desse grupo aberto, formado por diversos profissionais, surgiu o coletivo apē, estudos em mobilidade (o nome vem do tupi, “caminho”), do qual ambos fazem parte, que tem desenvolvido uma série de ações. “Uma das coisas que nos incomodava quando estudávamos mobilidade eram as ´transitolândias´ como únicas referências em projetos educativos de mobilidade urbana. São esses cenários e atividades que ensinam as crianças a serem ´cidadãos obedientes´, que pensam sob um único aspecto: o do trânsito”, conta Mateus.

mapa e crianças

Marieta Colucci apresentando para as crianças um mapa com o percurso que farão na cidade de São Paulo.

Quando apareceu a oportunidade de fazer uma parceria com o Instituto Thomie Ohtake, o apē criou o projeto “Exploradores da Rua”. A proposta? Levar crianças de escolas públicas para explorar o ambiente urbano. Em um percurso de 850 metros, as crianças observariam o entorno e depois desenhariam e fariam propostas para a cidade. “As crianças querem mais água, lagos pela rua, sorveterias. Elas reparam muito em elementos soltos: onde tem lixo, folhetos caídos, santinhos de candidatos na época da eleição. Elas têm um olhar miúdo, detalhista, e especial para os elementos naturais”, conta Marieta. Nesta entrevista, eles detalham essa vivência e falam dos resultados de estudos que fizeram sobre a mobilidade das crianças pela cidade.

Como foi a recepção do projeto entre as escolas?

A primeira escola à qual oferecemos o Exploradores não topou. A diretora simplesmente falou: “As crianças só saem daqui sob meu cadáver.” É claro que andar pelas ruas com crianças exige responsabilidade, avaliar os riscos. E existem de fato lugares hostis, mas é preciso entender até onde dá para ir, qual é o risco benéfico, e em quais situações o benefício é maior. Isso só começou a mudar quando mostramos fotos, vídeos, quando eles viram que a experiência era possível. Já implementamos o Exploradores da Rua em seis escolas, às vezes com várias turmas. Nessas escolas, as primeiras saídas incentivaram outras. Uma delas montou um roteiro de visitas ao trabalho dos pais das crianças, por exemplo. E nós passamos a não seguir um roteiro pré-definido. A própria rua se transformou no nosso objetivo: visitamos uma unidade de saúde do bairro, uma sapataria. Acho que o grande ganho foi romper o mito de que a cidade é um monstro, de que é perigosa. Existe uma percepção de que as crianças vão sair correndo, como se elas fossem irrefreáveis. Muitas escolas têm também a concepção de que para sair é preciso arrumar um ônibus e ir a um local específico, como o Teatro Municipal ou a Pinacoteca. Claro que são passeios válidos, mas conhecer o entorno pode ser ótimo também, e servir a vários objetivos pedagógicos. A ideia é ampliar a percepção do território como lugar educativo e desemparedar a escola. Algo muito potente e escalável, que cada educador pode adaptar à sua realidade.

Como fazer essa ideia crescer?

Trabalhando com a formação de professores. Queremos oferecer a eles ferramentas para que atuem fora da escola. Cada um pode adaptar para a sua realidade os caminhos, roteiros, pesquisas. Um dos professores que participaram de uma formação, o Paulo Magalhães, da EMEF Duque de Caxias, decidiu a partir da experiência dar aulas públicas. Ele costuma ministrar suas aulas na rua e recebe a todos os que quiserem assistir.

crianças na cidade

Mateus Humberto, do coletivo Apē, acompanhando grupo de crianças em passeio pela cidade de São Paulo.

O que acontece quando as crianças começam a sair?

Sair com crianças numa cidade como São Paulo ainda é um evento, parece um zoológico ao contrário, as pessoas param para ver, alguns filmam, é inusitado. Isso não precisaria ser assim. Percebemos que quando as saídas ou caminhos ficam instituídos, o bairro também assimila esse movimento, se adapta, se modifica. Quando você ocupa a rua, muda a rotina do bairro. Na EMEI Chácara Sonho Azul, no Jardim Ângela, por exemplo, uma professora queria frequentar a praça em frente, que costumava ter usuários de drogas. Para isso bolou a estratégia de sair cantando da escola em direção à praça. A cantoria servia como aviso para que os que estavam usando drogas saíssem ou permanecessem, respeitando a presença das crianças. É possível criar pactos para usar o espaço público, e também incentivar a convivência. As crianças também têm de entender certas regras do espaço. Elas não podem chegar gritando perto de pessoas dormindo, por exemplo.

Que benefícios estar na rua traz?

Vários. O contato com a diversidade da rua quebra preconceitos e apresenta questões da cidade e da cidadania que promovem um ganho social e emocional muito positivo para as crianças. Tem também um impacto nos pais: as crianças que antes não saíam e se sentem mais seguras começam a pedir para sair, querem voltar a um determinado local de que gostaram. Teve uma família que nos relatou que achava que não era permitido entrar no Teatro Municipal mas depois que o filho foi eles visitaram o lugar. Isso vai ampliando o direito à cidade. E ainda tem o benefício de se mover, para além do espaço do recreio, de estar ao ar livre. A escola também pode adaptar conteúdos, mudar concepções e aumentar seus espaços, tanto físicos, no caso de um parque ou praça que frequente, como de percepção sobre a rua. E a comunidade desse entorno, o comércio local, também ganham: com mais crianças na rua ela se torna mais segura.

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Mateus Humberto, do coletivo Apē.

Mateus, além do apē, você também pesquisa a mobilidade das crianças. Que dados já levantou?

Como parte da tese de doutorado, comecei um estudo em cerca de 200 pré-escolas e creches de São Paulo, mapeando percursos de 500 metros, 1 mil e 2 mil metros no entorno, que são vencidos em 10, 20 ou 40 minutos a pé. A ideia era entender quais eram as maiores barreiras para que as crianças chegassem na escola caminhando. Um dos resultados que apareceram foi que as crianças das escolas públicas se locomovem duas vezes mais a pé do que as de escolas particulares. Mas olhando os vários indicadores é curioso constatar que muitas dessas escolas estão em locais com mais obstáculos, com pior entorno. Ainda assim, não deixa-las ir a pé não se justifica. Muitas vezes, justamente as escolas em melhores localizações e com mais condições para incentivar a caminhada são as que menos o fazem.

Por que esse medo tão grande das ruas?

As pessoas pararam de ter uma percepção real do mundo, e isso tem piorado com o acirramento político. As decisões, muitas vezes, não são baseadas em evidências reais. Mas em percepções que são construídas de outras formas. Por isso é essencial levantar dados. Também é interessante conversar com as crianças sobre seus medos, ver onde elas gostam de brincar e de onde elas têm receio. Muitas vezes, essas emoções são produto de preconceitos passíveis de questionamento, como o perigo que costuma ser associado ao morador de rua. Neste ano vou aprofundar o estudo em quatro escolas, mapeando por que algumas crianças vão a pé e outras não, mesmo tendo condições iguais. Acontecem situações complexas, que precisam ser olhadas. Mas a solução, na maioria das vezes, não é retirar nossos corpos das ruas mas sim, ao contrário, ampliar nossa presença, ocupar os lugares.

Como incentivar esse movimento?

Tem justamente esse lado acadêmico, de gerar dados, comparar evidências. Com isso você consegue embasar ações de advocacy, pressionar, orientar políticas públicas. Outra possibilidade que estamos estudando é criar kits com jogos, atividades e discussões que possam ajudar os professores a saírem, observarem, ampliarem seu repertório. E ainda soluções simples, como pensar estratégias para facilitar as saídas: o que funciona? Identificar as crianças com lenços? Chamar pais, avós, vizinhos para acompanharem as saídas? Ter um cartaz com uma mão para parar o trânsito? Sair com um adulto na frente e outro atrás? Você vai percebendo as estratégias mais eficazes…

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Marieta Colucci, do coletivo Apē.

Quais as consequências, para as crianças, de não sair, de viver a cidade como um `não lugar´, uma ´não cidade´?

Isso cria uma falta de referência, uma lacuna na formação como cidadão. Acabamos tendo cidadãos obedientes às leis do trânsito, a determinadas normas, mas falta a parte de perceber o outro, de saber conversar, de poder estabelecer pactos para organizar o espaço. É importante aprender isso. A gente também começa a ter uma percepção apenas do tempo, de quanto demora ir de um local a outro, mas perde todo o espaço. Quem caminha ganha espaços, percebe lugares, cria histórias. O aplicativo Waze é um exemplo perfeito disso. A cidade some, ele calcula tempo independentemente de o caminho ser reto ou em ziguezague, não se pensa mais no percurso, não se frui a rua. É como se abríssemos mão dos espaços públicos, abertos. Como se a cidade virasse apenas fachadas com as quais não interagimos. E isso tem consequências: eu não preciso mais cuidar da árvore em frente à minha casa, nem da calçada. A prioridade vira apenas o leito carroçável. Claro que existe a desigualdade, muita gente mora longe e precisa se deslocar muito, mas a solução não é abrir estradas e sim levar cidade para esses territórios. Sempre existe um território a ser trabalhado. A questão é que alguns têm mais investimento, outros não.