Aguentamos ficar longe da natureza?

30 Sep Aguentamos ficar longe da natureza?

Até alguns meses atrás, talvez fosse estranho perguntar como uma criança poderia ter contato direto com a natureza dentro da sua própria casa, ambiente basicamente constituído por paredes, janelas, móveis e eletrônicos. A primeira imagem que vem à mente quando se fala em conexão com o ambiente natural é a da imersão na própria natureza: o contato direto com árvores, praias, montanhas, rios ou parques.  

Com a pandemia e o isolamento social, as crianças foram afastadas dos ambientes abertos, o que tem prejudicado seu livre brincar e livre explorar em áreas verdes. As consequências dessa falta não serão pequenas: muitas crianças começaram a apresentar sinais de estresse e tristezas pontuais.

Algumas famílias, atentas e preocupadas com as crianças, começaram a buscar ressignificar a conexão de seus filhos com a natureza dentro do próprio lar, e ofertas começaram a surgir, como, por exemplo, atividades científicas (plantação de feijão no algodão), atividades sensoriais (brincadeiras com argila), atividades poéticas (leituras sobre a vida animal), atividades tecnológicas (games pedagógicos dentro da temática), entre outras.

Com base nessa realidade, e também com o interesse de descobrir as formas como as crianças genuinamente se conectam – ou reconectam – com a natureza dentro de suas casas, sendo elas as protagonistas desta busca, o projeto “Trilhas de Criança” realizou uma pesquisa com 111 famílias e achou preciosidades nas respostas.  

Durante a pesquisa, foi solicitado aos adultos que descrevessem somente as brincadeiras autodirigidas dos filhos durante a quarentena. Aquelas iniciadas pela criança sem a interferência do adulto foram as principais na análise dos dados.    _MG_8225

Dentro dessa perspectiva, dois campos distintos de brincadeiras foram analisados, sendo o primeiro aquele que trouxesse algum tipo de elemento natural e o segundo quando aparecesse algum tipo de resposta direta ou indireta que demonstrasse a falta que a natureza faz para a criança. 

A pesquisa também separou para análise as crianças que moram em apartamentos, das que moram em casas, para ver se há ou não maior impacto do déficit de natureza.

Veja abaixo algumas dessas brincadeiras:

  • Brincadeiras realizadas por crianças que moram em apartamentos (52 famílias, 46,8%):

Brincadeiras com elementos naturais:

– Brincadeiras com água, terra adubada ou farinha, nas sacadas ou banheiros.

– Fazer bolinha de sabão

– Manipular alimentos junto aos pais

– Criar “poções” com elementos naturais que já existiam na casa (pedras, conchas, pedaços de madeira)

– Comidinha feita com folhas que caem na varanda ou entram pela janela

– Brincar com água lavando os brinquedos no box do banheiro

– Mexer na terra dos vasos

– Usar folhas e sementes para pintar

– Brincar com blocos de madeira

– Molhar as plantas

– Cuidar dos animais domésticos

Brincadeiras representativas que refletem direta ou indiretamente a falta da natureza:

– Criação de cidades arborizadas com Lego

– Cabaninhas com almofadas e cobertas

– Brincar com o cavalo de brinquedo

– Usar pedras para criar casas para o Playmobil 

– Brincar de fazer viagens de férias

– Pintar os vidros das janelas

– Correr pela sala

– Fazer trilhas com circuitos dentro dos quartos

– Escalar as estantes

– Fazer as bonecas irem à escola para ter a hora do recreio

– Falar com os passarinhos na janela

– Sentir o sol da janela

  • Brincadeiras realizadas por crianças que moram em casas (59 famílias, 53,2%):

Brincadeiras com elementos naturais:

– Brincar de comidinha com elementos naturais do quintal

– Plantar e regar as plantas

– Observar os bichinhos 

– Cuidar dos animais domésticos

– Subir na árvore e balançar

– Fazer piquenique de frutas

– Mexer na terra e cavar buracos para fazer lama

– Colher gravetos, folhas e pedrinhas no chão

– Construir reinos com madeiras e pedras

– Jogar pedras na água

– Usar lente de aumento para brincar com formigas e borboletas que vão nascer

– Cuidar da horta, alimentar a composteira

– Dar comida aos pássaros

– Fazer fogueira

– Fazer perfume de flores

– Capturar bichinhos para criá-los (terrário)

– Fazer mandalas de flores

– Fazer esculturas com barro

– Criar trilhas de areia para os carrinhos

– Guardar objetos naturais dentro de potes

– Banho de mangueira

IMG_4544 (1)

Brincadeiras representativas que refletem direta ou indiretamente a falta da natureza:

– Imaginar desenhos com as nuvens

– Observar a lua e o movimento dos planetas

– Colocar a mochila nas costas, pegar cantil e lanterna, e partir para fazer trilhas imaginárias

– Andar de bicicleta na garagem

– Nomear as árvores

Numa primeira análise, acredita-se que a criança que mora numa casa consiga equilibrar melhor seu déficit de natureza, pela própria existência de um quintal. Entretanto, num outro momento da pesquisa, indaga-se se a criança tem sentindo falta de estar no meio natural, e apenas sete crianças, entre as 52  que moram em casas, não sentem necessidade de sair para um encontro direto com a natureza.

As mães dessas 52 crianças disseram que seus filhos estão mais agitados, estressados, ansiosos, chorosos, indo ao encontro da porta, pedindo para sair e ir a uma praia, uma trilha ou ao parque. Dessa forma, entendemos que, mesmo havendo um quintal e contato direto com elementos naturais, para essas crianças, estar em conexão com a natureza é estar in loco, imerso, em liberdade de ir, vir, correr, cair na água, sentir o cheiro da floresta, tocar na areia e entrar no mar.

As mães que moram em apartamentos observaram os mesmos efeitos em seus filhos, e ainda acrescentam que suas crianças estão mais entediadas, com energia acumulada, com concentração reduzida, com saudades da casa dos avós e, principalmente, dos amigos.

A natureza do quintal, de certa maneira, supre a saudade dos amigos. As árvores, os insetos, as nuvens fazem companhia e, até certo ponto, alimentam as emoções das crianças.

As famílias que moram em apartamentos sentem maior dificuldade em perceber essa ressignificação da conexão da criança com a natureza, mas a verdade é que, quando os filhos têm liberdade para se expressar e desenvolver suas habilidades criativas, eles conseguem, sozinhos, nutrir-se da falta provisória do contato direto com a natureza, tendo em vista as brincadeiras autodirigidas que criaram durante a quarentena.

Já as famílias que moram em casas com quintal conseguem perceber mais facilmente esse contato direto das crianças com os quatro elementos (água, terra, fogo e ar). Contudo, as mães e os pais também sentem a necessidade de ressignificar a vivência com a natureza, porque seus filhos ainda se encontram num ambiente fechado e limitado.

_MG_4552Para finalizar, trago outro dado interessante da pesquisa: somente 38,7% das famílias acham que a saúde física dos seus filhos está sendo prejudicada com a falta do contato direto com a natureza, e 41,4% acham que o prejuízo pode ser emocional. Esses valores, de certa forma, se contradizem quando 85,6% afirmam que, numa escala de um a cinco, colocam como importância máxima que os filhos estejam em meio à natureza.

Ora, por observação direta de seus filhos, os pais estão dizendo que as crianças não estão sendo prejudicadas na conexão direta com a natureza. Para que isso pode nos alertar? Que talvez as crianças, de um jeito ou de outro, estejam conseguindo manter o significado da presença da natureza dentro delas? Que o confinamento gera estresse por motivos diversos, que não estão necessariamente ligados à falta da natureza? Ou que talvez os adultos não percebam o déficit da natureza ocorrendo silenciosamente dentro dos pequenos corações?

Quanto aguentamos ficar longe da natureza? 

A boa notícia é que 97,3% disseram que, assim que tudo isso acabar, querem fazer uma trilha, querem ver, sentir, cheirar, tocar, ouvir as árvores, os rios, o mar. 

E você, o que anda observando nos seus filhos?

Lesly Monrat, mãe de duas crianças, escritora, documentarista, ativista da maternidade feliz e criadora do grupo @trilhasdecriança

* A opinião retratada no texto não reflete necessariamente do programa Criança e Natureza