Natureza com todos os sentidos

Um dia de trocas entre crianças que enxergam e que não enxergam, numa reserva no meio da Mata Atlântica
Criança com deficiência visual, acompanhada por um adulto, toca uma pedra, nas margens de um riacho.

07 Sep Natureza com todos os sentidos

O dia estava frio, chuvoso, nublado. A mata verdejante, com vapores subindo. As águas da represa, calmas. Quando lembro, imagino um quadro. Nele, estão retratadas crianças com e sem deficiência visual de mãos dadas, brincando em roda, batendo os pés no chão, cantando e fazendo um pulsar de troca com a terra.

As crianças sem deficiência descrevem o que veem para as crianças com deficiência visual. As crianças com deficiência partilham o seu jeito de ser e de brincar. Mostram seus recursos e dão dicas para que o dia seja acessível. Explicam como enxergam, como gostam de ser guiadas, o que curtem ouvir e fazer.

Criança abraçando e cheirando uma grande folha.

Criança em contato com a Natureza na reserva Legado das Águas. Foto: Ana Ferriani

No rosto de cada participante, uma expressão de alegria por viver um dia com a natureza, um dia de movimento, esporte e conexão. Também um dia de inclusão, desafios e superação. Um dia em que todos terão a possibilidade de entrar na água para remar, nadar, sentir, brincar.

Foi a vontade de proporcionar momentos na natureza intocada e ainda remota para muitas pessoas que me levou a criar o programa Natureza de Criança. E, dentro dele, o Natureza de Criança Inclusivo, no qual crianças com e sem deficiência visual fazem atividades na natureza. Este ano, com o apoio da Lei de Incentivo ao Esporte e a parceria do Instituto Votorantim e da reserva Legado das Águas, serão realizados 3 programas com um total de 66 crianças e 66 adultos. O primeiro já aconteceu. E o que vivemos e sentimos ficará registrado para sempre na memória de cada um. 

Ao descrever para outra pessoa cenas da natureza, escolhemos aquilo que por algum motivo nos toca. Pedra, árvore, remo, movimento, lago… Para descrever é preciso sentir. Contar o que se vê, o que nos encanta. Já a experiência tátil traz o mundo intangível para a palma das mãos de quem não vê. Aquilo que se ouvia agora é vivido com o corpo todo. 

Criança, dentro de um rio e usando um colete salva vidas, jogar água para cima para que caia como chuva pelo rosto.

O Natureza de Criança Inclusivo proporcionara para 66 crianças, com e sem deficiência visual, essa imersão sensorial na Natureza. Foto: Ana Ferriani

A mão que sente o riacho correr entre as pedrinhas e pedronas, o gelado da água que fica mais quente quando o corpo se acostuma com a temperatura. A sensação de nadar, jogar água para cima para cair como chuva pelo rosto. A folha maior que o corpo, o úmido do musgo na árvore. Tudo, na natureza, é uma rica experiência sensorial.

Por isso, estar com crianças com e sem deficiência na mata é oferecer a possibilidade de ampliar o repertório da infância. Trazer a grandiosa e distante natureza para perto. Aproximar a deficiência visual das relações para que, com essa experiência compartilhada entre universos tão distintos, ideias preconcebidas sejam desmistificadas na prática. Há uma troca genuína entre as crianças. 

Todo ser humano merece ter a oportunidade de experimentar novas sensações e movimentos em ambientes naturais. Porque para perceber o pulso da natureza não é preciso enxergar com os olhos da face. É preciso se abrir e receber esse pulsar com todos os sentidos.

Isabela Abreu
Educadora ao ar livre e produtora de viagens, é co-fundadora da ONG Grupo Terra, que leva adultos com deficiência visual para experiências na natureza e corridas de aventura. Co-criou ainda programas que levam jovens com deficiência intelectual para expedições na montanha e famílias para experiências de base comunitária na Amazônia e Maranhão.

* A opinião retratada no texto não reflete necessariamente a do programa Criança e Natureza