A cidade abre espaço para brincar?

Sofia Olival, do Laboratório Urbano de Brincadeiras (LUB), vem pesquisando com um grupo de crianças, em Paraisópolis, São Paulo, como desenvolver criatividade e autonomia – e enxergar a cidade com outros olhos
Foto tirada de cima. Um menino olha para o alto com uma lata de tinta vermelha na mão. Ao redor dele muitas plantas.

01 Nov A cidade abre espaço para brincar?

Por Carolina Tarrío

A paulistana Sofia Olival cursou arquitetura na PUC-Rio, e, na hora de fazer o trabalho de conclusão, percebeu que queria gerar uma solução a partir de uma vivência. “A gente passa quatro anos na faculdade vendo tudo teoricamente, desenhando soluções no papel”, diz. Sofia voltou para São Paulo e começou a caminhar pela cidade. “Notei que havia usos diferentes do espaço, que alguns grupos transformavam e subvertiam de algum modo a ordem: o catador que caminha pelo asfalto puxando sua carroça; os grupos que fazem escaladas em prédios; os que praticam parkour e enxergam muretas, corrimãos e escadas de um jeito diferente…” Ela focou sua pesquisa nesses grupos que chamou de “brincantes” da cidade e, por fim, resolveu procurar os brincantes por excelência: as crianças.

Menino balançoSofia convidou um grupo de 15 meninos e meninas, entre 8 e 13 anos, para brincar em um terreno vazio em Paraisópolis. Junto com elas, e com sua irmã Beatriz Olival, psicóloga, e mais duas parceiras, Carla Otta e Leticia Borges, criaram o LUB: Laboratório Urbano de Brincadeiras. Ali, não tem proposta pronta. A ideia é levar alguns materiais, ter tempo livre e um espaço (grande) disponível para “caçar o que fazer”. Foi assim que elas foram vendo surgir construções, percursos, brincadeiras – e às vezes um tanto de tédio que acaba por disparar o gatilho da criação. Aqui, Sofia conta sua experiência com o projeto, que as crianças apelidaram de “Brincreto”.

Vocês fizeram um piloto em 2017 e este ano ampliaram, abrindo para a comunidade de Paraisópolis. Como foi a aceitação?

Até hoje não sei se as mães sabem exatamente o que estamos fazendo ali, porque em Paraisópolis, a maioria das crianças entre 6 e 13 anos chega sozinha. Mas as mães que aparecem nos falam da importância desse espaço amplo para correr e brincar, elas mesmas têm memória de locais assim, de quintais na infância, com terra para mexer e árvores frutíferas. De todo modo, os pais preencheram uma ficha de autorização, na qual explicamos que as crianças iriam ali para brincar livremente, que era preciso enviá-las com uma roupa que pudesse ficar suja, com sapatos fechados, e que seriam realizadas atividades como subir em árvores ou mexer com ferramentas, o que envolve certo risco.

Como vocês lidam com o risco?

Acreditamos na validade do risco, e nunca tivemos nenhuma intercorrência. Em geral, o que fazemos, é estar atentas, por perto, e sempre devolver à criança as perguntas, quando elas pedem permissão para fazer algo. “Você dá conta de subir? O que acha da altura?”. Tem um abacateiro enorme no terreno. Meu primeiro ímpeto, quando elas começaram a trepar alto, foi mesmo de medo, mas percebi que as crianças vão entendendo até onde o corpo dá conta, até onde a perna alcança. Cada uma tem seu tempo, e vai aprendendo como procurar a força, que habilidade tem de desenvolver. Nos inspiramos muito nos “Adventure Playgrounds”, que existem nos Estados Unidos e na Inglaterra, já visitamos alguns. São espaços para a livre brincadeira, com ferramentas e materiais, como martelos, pregos, serras, cordas, que permitem que as crianças construam o que querem. A ideia é que os monitores sejam invisíveis. Então, o que fazemos é preparar o espaço e dar lugar para que as brincadeiras aconteçam.

Que mudanças vocês percebem nas crianças?Menina comidinha

Tem um menino de sete anos que é muito focado: ele faz buracos e desarma coisas com a maior paciência, com muita persistência. Foi uma surpresa quando a mãe nos contou que na escola queriam encaminhá-lo a um psiquiatra, porque diziam que ele não conseguia se concentrar! Percebemos que ele está bem mais sociável, antes era mais tímido. Também notamos que, aos poucos, o grupo vai se consolidando, que uns cuidam dos outros, e que as meninas se soltam mais. De início, havia muita gritaria cada vez que uma minhoca aparecia, hoje as meninas querem fazer parte de tudo, entram de cabeça nas brincadeiras. As crianças ainda demandam bastante interferência, principalmente as maiores, mas estão gradualmente se apropriando do espaço, transformando-o, e percebemos uma vontade grande de estar ali.

A brincadeira está por demais “regrada”?

Os menores têm a exploração e o brincar muito incorporado. Mas é como se, com o tempo, esse estado natural fosse sendo perdido, como se o repertório das crianças fosse sendo “podado”. Elas mesmas criticam as ideias do outro por momentos, e nosso papel é mediar isso. Muitas sentem até medo de um lugar como o Brincreto, com possibilidades infinitas. Mas esse encontro com o tempo livre, e por vezes com o desconforto de “não fazer nada”, que nós adultos também sentimos e temos de aprender a lidar, vai abrindo caminhos para criar, moldar, imaginar. Parte da minha pesquisa é ver como se pode projetar, na cidade, espaços mais versáteis. Os parquinhos e praças, por exemplo, têm possibilidades bem limitadas: escorregar, balançar, escalar. Mas o espaço pode desencadear outras múltiplas habilidades.

Crianças pintandoHá vários relatos de como as crianças aproveitavam os terrenos baldios antigamente, de como, no pós guerra, os escombros eram fonte de descobertas. Isso se perdeu?

Sim, é raro hoje um espaço mais “selvagem”, como o local onde estamos, em Paraisópolis, que tem mato, de onde as crianças tiram coisas, que traz desafios maiores e, ao mesmo tempo, exige um respeito com o seu corpo e com o do outro, uma responsabilidade maior. Aqui, a criança precisa avaliar a todo momento risco e benefício, não está tudo pronto. Mas isso vai dando a elas um repertório e uma autonomia enormes e, acredito, mais segurança. Elas vão ganhando confiança em suas habilidades e julgamentos. Parece contraditório, mas quando tudo está protegido, com redes nas janelas, quinas arredondadas, chão macio, tudo controlado, a criança presta muito menos atenção, ela se joga, nem se preocupa. O que acaba levando a mais acidentes. O consultor britânico Tim Gill diz que quantificar acidentes é bem mais fácil do que quantificar benefícios, que são menos palpáveis. Ele diz que os playgrounds convencionais acabam provocando mais acidentes porque as crianças vão testando usos diferentes, já que ficam entediadas daquilo.

Como é o brincar na comunidade de Paraisópolis?

Menino barquinhoAndando pelas vielas e ruas, você vê muitas crianças a partir dos 8, 9 anos. Elas fazem tudo a pé. Mas isso não significa que brinquem. Há um trânsito intenso de motos e carros, pouca sinalização no espaço da rua. Só em algumas vielas mais tranquilas elas empinam pipas ou brincam de bonecas, mas o espaço é pequeno. Os outros locais são a quadra e as instituições e ONGs que as recebem no contra-turno escolar. Mas no final de semana, quando perguntamos o que fizeram, é mais um churrasco em família ou elas ficaram jogando videogame.

Você acha que um projeto como este seria possível em outra área da cidade?

Sim, mas tem de ser bem conversado com os pais, com pessoas que entendam o valor desse cálculo entre risco e benefício, que entendam a importância do livre brincar. É quase um manifesto, um movimento que está começando. E que precisa ser acordado com os pais, acontecer em aliança. Tem uma frase que gosto de citar, do documentário “The Land”: “É melhor um osso quebrado do que um espírito quebrado”. Se trata de espalhar uma visão diferente, de que a cidade pode ser um território de brincar por inteiro, pular qualquer grade, escalar qualquer muro. Se trata de recuperar espaço da rua para as crianças, um espaço que foi perdido, e ressignificá-lo.

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