A perifa-potência

18 Oct A perifa-potência

Jaison Pongiluppi Lara fala da experiência da Casa Ecoativa, um centro eco-cultural no qual ele vem provando que as margens da cidade podem significar oportunidades, afeto e sustentabilidade

Uma balsa atravessa a represa Billings para chegar à Ilha do Bororé, no Grajaú, extremo sul de São Paulo. O ar fica mais fresco por causa do verde e da água dessa área de proteção ambiental. A poucos passos do cruzamento da balsa, há um terreno grande, com uma série de casinhas simples. Na última delas funciona a Ecoativa, projeto hoje liderado por Jaison Pongiluppi Lara.

“Eu sou cria da Ecoativa. De 1996 até 2006, quando completei 15 anos, fiz aulas de capoeira e também cuidava da biblioteca. Foi aqui que ouvi pela primeira vez a palavra permacultura”, conta. Naquela época, a casa tinha uma movimentação cultural grande, mas quando Eduardo Freire, liderança que ajudou a montar a Associação de Moradores do Bairro saiu, ela acabou fechando. Jaison foi então fazer um curso técnico em design gráfico, trabalhou em gráficas e editoras e ficou um tempo afastado.

“Quando voltei fui me aproximando dos agricultores daqui e, em 2013 e 2014, comecei a fazer parte do coletivo Imargem, que organiza vários projetos e tem cursos de formação”, conta. “Durante a Virada Sustentável de 2014, vimos que poderíamos recuperar a casa e voltar a ficar ativos.” Jaison montou uma horta no terreno da casa junto com as crianças da escola local, visitou com elas outros pontos do bairro e encerrou o projeto com a ocupação da casa. “Em um fim de semana, pintamos, limpamos e montamos bancos, com a ajuda de várias pessoas e movimentos, como o Boa Praça e os escoteiros, que vieram somar”, lembra. Aí, a conversa com a Empresa Metropolitana de Águas e Energia  (EMAE), que é dona do imóvel, e com a Secretaria do Verde, teve início.

Qual é a situação da Ecoativa hoje?

Nós somos considerados uma ocupação, nossa permanência ainda não está garantida, embora a EMAE diga que não vê problema com nossa presença. Eles fizeram uma espécie de: “vamos tapar os olhos e vocês vão tocando os projetos enquanto a situação segue tramitando”. A EMAE terá de ceder a casa à Secretaria do Verde, que então poderá fazer um termo de cooperação técnica com a Associação de Moradores para que fiquemos aqui. Enquanto isso não desenrola, vamos trabalhando com a escola, organizando nosso Sarau de Cordas, que acontece todo penúltimo sábado do mês, promovendo grupos de estudo etc.

Crianças sentadas em parque de bambuVocês montaram um parquinho para as crianças e tiveram que dar um passo atrás, o que aconteceu?

O projeto foi super bem cuidado, todo feito com recursos da região: madeira, bambu… foi financiado via lei de fomento à periferia. E a construção incluiu vários ateliês abertos de formação. O que nos norteou foram as ideias das crianças, que queriam casas nas árvores, tirolesas… Quando inauguramos o parquinho, a criançada tomou posse! Elas ganharam muita autonomia e a gente sempre estava por lá, incentivando um uso atento, um olhar para o coletivo, para o tempo e o corpo do outro. Vinha o pessoal da escola, vinha quem estava esperando na fila da balsa, a Ecoativa foi uma antes e outra depois do parquinho. Agora, tivemos que retirar a tirolesa e a ponte pênsil. Sem esses brinquedos, que eram os mais legais, o uso caiu em cerca de 60%. Mas vamos reinstalar! A segurança é um monstro que está na cabeça das pessoas, não sei de onde surge, por isso a EMAE pediu a retirada. Eu me pergunto: o que é mais negligente? Abandonar um terreno, ao qual as crianças têm livre acesso ou deixá-las brincar em um parquinho bem construído? Qualquer parquinho envolve um risco, mas por isso você não vai montar?

Como foi enquanto o parquinho funcionou?

As crianças foram ampliando seus desafios, apontando caminhos. Com a escola Estadual Professor Adrião Bernardes estamos trabalhando o conceito de escola aberta. De início, as professoras ficavam muito apreensivas, depois foram se tranquilizando. Elas têm muito medo de uma retaliação da própria comunidade, de toda a hierarquia que vem cobrando. Os pais se queixam: “Meu filho chega com terra na roupa!”. Tem pais e mães que não gostam que os filhos saiam do espaço da escola, que venham até aqui, acham que eles estão “perdendo tempo” se não ficam lá, sendo expostos a conteúdo. Tem gente que só quer saber de cursos técnicos, que só pensa em ajudar o filho a sair deste bairro. A gente trabalha justamente para fazer essa contra-narrativa da periferia. Para mostrar que a perifa pode ser potência, e não só escassez.

Qual é a postura da escola?

Eles entendem o valor de deixar as crianças saírem, de terem outras vivências, de haver coletivos aqui na região que podem compartilhar experiências com eles. Estamos criando uma base, trabalhamos em parceria há 4, 5 anos. Agora a escola nos ajuda nessa interlocução com os pais. Este ano conseguimos promover uma semana inteira de atividades ao ar livre, com alunos dos vários ciclos, foi incrível! E a gente sabe que isso exige muito dos professores, da direção. Eles vêm com um ônibus.

Ônibus? Mas é perto, não?

A questão é que a escola não deixa que venham a pé, porque não tem calçada! Estamos justamente numa movimentação para ter mais segurança no trajeto, é algo básico. As crianças precisam poder circular a pé.

E o que elas fazem na Ecoativa?Realização de oficina

Elas fazem práticas na horta, no parquinho, aprendem na prática o que viram na teoria. Estão estudando sobre a clorofila? Vamos olhar as plantas. Eu percebo que só de a aula não ser entre quatro paredes, de elas estarem na natureza, em um outro local, a atitude já muda. As professoras e mães relatam que as crianças esperam por este momento. A gente sabe que dá trabalho, que para o professor é mais difícil estar fora da sala de aula, organizar, planejar. Valorizamos muito que façam isso, temos oito professores mais parceiros. E eles também percebem que, com as saídas, a interação das crianças melhorou. Assim vamos ganhando os outros professores ainda mais resistentes…

Que outros desafios você identifica?

Os desafios aqui são enormes. Eu sou fruto deste espaço, aqui está a minha história, a minha formação, e eu o valorizo. Mas eu sou exceção. O que quero é que esse meu percurso vire regra. Para isso fazemos formações para a juventude, projetos com as crianças. Para que todos possam enxergar este lugar, ver sua potência, queiram estar aqui. Vivemos uma cultura de não ir para a rua, e a Ecoativa está na contramão disso: a gente quer se encontrar, criar um espaço de convivência saudável. A gente quer conversar e repensar o estereótipo da periferia, o papel do Estado. Porque o Estado, quando chega aqui, chega batendo. Mas aos poucos ganhamos terreno. Outro ponto que é preciso rever é que uma área verde pode ser um “não lugar”. Todos, aqui, dão as costas para a represa, a natureza às vezes é vista como inimiga, como problema, mas ela pode ser solução.

O que você acha que esse contato próximo com a natureza traz às crianças?

Um espaço verde, por si só, não garante que uma criança fique tranquila, saudável. Existe uma conta social, uma família que precisa estar estruturada. Para mim, foi essencial saber que venho de uma família de agricultores. E foi incrível voltar a enxergar isso com os olhos da sustentabilidade, da permacultura. Ter esse tempo para reconhecer minha história e entender o que me alimentou. Isso me fez ver uma potência neste bairro verde, de agricultores orgânicos. E sei que essa consciência veio do meu tempo com os coletivos culturais. Eu pensava: mas como o Grajaú é o local com menor IDH de São Paulo, se aqui estão fazendo coisas tão lindas?! Para isso é preciso mudar a referência, parar de focar só no consumo e enxergar outras coisas, valorizar outras práticas. Tem que ter um movimento de afetividade, de memória, de identificação com o lugar. A Ecoativa é uma gota nesse oceano, que se articula com outros projetos do bairro, para falar de educação, de direito à cidade e de segurança alimentar.

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 “TER ACESSO À NATUREZA É UM DIREITO DAS CRIANÇAS”
“DÁ PARA FAZER MUITO, COM POUCO”