Acampar na natureza: uma etapa do processo de deixar de ser criança e se tornar adolescente

30 maio Acampar na natureza: uma etapa do processo de deixar de ser criança e se tornar adolescente

Pedagoga especializada em levar crianças para aventuras na natureza conta como essas experiências contribuem de forma significativa na incrível jornada da adolescência. Explica ainda por que o medo dos perigos da floresta não deveriam ser uma barreira para os pais.

30/05/2017

Por Mariana Sgarioni

 

A pedagoga e instrutora de educação ao ar livre Silvia Guimarães, conhecida como Shubi, passou mais de dez anos participando de competições de longo percurso na natureza. Já foi capaz de enfrentar os lugares mais remotos do mundo, como as montanhas das Ilhas Fiji, ou as corredeiras do Vietnã, ou os ventos da Patagônia – só para citar alguns. Criadora da primeira equipe feminina de corrida de aventura no Brasil, ela acumula medalhas e histórias de superação, além de uma longa experiência de liderança e relacionamentos em expedições.

shubi_e_filhoAos 41 anos hoje, a mãe de Antonio, o Tonico, de 4 anos, já não compete mais. Seu compromisso atual é com a educação. Shubi atualmente dedica-se a conviver com as crianças no ambiente em que mais se sente à vontade: o ar livre. Ela faz parte do time de instrutores da OBB Brasil e comanda o Acampamento Go Outside de Aventura, que leva crianças de 5 a 16 anos para férias com adrenalina na natureza.

Na OBB, ficou à frente da primeira expedição da organização no país, voltada a pré-adolescentes entre 10 e 12 anos, que aconteceu no mês passado, o OBB Go. Com ela, a garotada se sente segura para acampar, pedalar em ribanceiras, subir em árvores, escalar montanhas. E voltar para a casa com a sensação de que o mundo é muito maior do que o apartamento. “Quando a gente aponta para as crianças, do alto de uma montanha, o percurso que fizeram, elas dizem: “Nossa! Como foi que eu consegui isso??!! É um momento emocionante.”, diz.

Na entrevista a seguir, Shubi conta como passar alguns dias imerso na natureza transforma a vida física e emocional das crianças e adolescentes. Basta apenas um voto de confiança dos pais: “A natureza é, por vezes, bem menos perigosa do que um simples playground de prédio”, alerta.

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Você esteve a frente da primeira expedição da OBB Brasil com pré-adolescentes. Como foi essa experiência?

Sou instrutora da OBB desde 2004. Quando soube que havia a ideia de lançar um programa para essa faixa etária, me ofereci para participar, pois meu foco são as crianças. Foi uma expedição rápida, de dois dias, mas muito intensa. Saímos do Pico do Diamante e fomos até o Pico do Itapeva, em Campos do Jordão (SP). Foram 10 km de caminhada, com 11 crianças, cada uma carregando todo o seu equipamento pessoal e do grupo nas costas: mochila, barraca, saco de dormir etc. Não havia conforto: se precisasse ir ao banheiro, tinha que cavar um buraco no chão. A maioria ali já tinha acampado na natureza ou feito alguma aventura com os pais. Mas desta vez eles estavam sem a família, num lugar remoto, e precisando tomar decisões o tempo todo. Ganharam muita autonomia. A primeira decisão que tiveram que tomar foi na chegada: vamos dormir nos beliches, na nossa base, ou vamos subir a montanha à noite e acampar no escuro? Alguns não queriam. Mas a maioria quis. E fomos.

 

Eles não ficaram com medo?

Alguns sim. Mas é possível conversar e trabalhar isso. Um dos meninos chegou a passar mal de ansiedade. Vomitou, chorou. Era a primeira vez que viajava sozinho, estava nervoso. Conversamos muito com ele, com os pais. Ele quis desistir, mas nós não desistimos dele! [risos] Depois de muito papo, ele acabou indo. No final da expedição, sentei com ele e disse: “Imagine o que você foi capaz de fazer! Saímos daqui e veja onde você chegou!”. Ele me abraçou e chorou. Disse: “obrigado por não me deixar ir embora. Estou orgulhoso de mim”. É importante que a experiência seja desafiadora, mas ao mesmo tempo possível. Queremos que todos encontrem os desafios certos para si. Para alguns, significa estar longe da família. Para outros, conviver com estranhos. E há ainda o aspecto físico.

 

shubi_criancaComo você acha que essas experiências na natureza se relacionam com a passagem da infância para a adolescência?

A geração de hoje de adolescentes é composta, na maioria das vezes, por crianças que lidaram pouco com frustração, com pais mais permissivos, onde houve falta de alguma rigidez na educação, muito tempo em frente a telas de computador e televisão, falta de tempo ao ar livre, momentos em que estivessem com amigos, tendo que se socializar e brincar, levando tombos e fazendo gols. Me parece que são adolescentes menos encantados com o mundo. A natureza encanta, maravilha as pessoas. A natureza desperta os sentidos. Esses jovens, quando estão em grandes desafios como o acampamento de aventura ou o OBB GO, entram em contato com sensações relativamente novas. Eles estão longe de casa, em uma espécie de “detox digital”, tendo que se expor com todos 24 horas por dia, praticando esportes, montando barracas, lidando com recursos limitados, sentindo emoções na pele, desde o abraço do novo amigo até a conquista de uma montanha. A endorfina correndo no sangue. Isso tudo traz o sonho de volta, a vontade de conquistar mais – algo inerente a essa fase da vida, mas que estava “adormecido” até então. 

 

Como são as crianças que você recebe nos acampamentos? Todas são “aventureiras experientes”?

De jeito nenhum. Recebo criança de 10 anos que nunca pisou no barro. Mas aí vai aprendendo. No Acampamento Go Outside, todas as atividades que vamos fazer tem aula antes. Por exemplo: vamos descer uma montanha de bicicleta? Primeiro tem que aprender a frear. Tem uma aula. Depois deixamos todos mais livres, deixamos que a criança experimente, até que encontre seu centro de equilíbrio. Se tiver que cair um pouco, tudo bem, faz parte do aprendizado. É importante que eles façam as coisas no tempo deles.

 

Não é perigoso alguém se machucar de verdade?

Já recebi mais de 800 crianças nos últimos 10 anos no Acampamento Go Outside. Nunca houve um acidente considerado grave. Nunca. Temos médicos em nossas viagens disponíveis 24 horas por dia e também temos regras claras. Por exemplo: quem não estiver de colete salva-vidas não entra na água. Agora, os pais me perguntam: mas meu filho pode cair e quebrar um braço? Sim, pode. Pode levar picadas de mosquito? Sim, pode. Entretanto, é preciso saber que, na natureza, a responsabilidade das crianças aparece de um jeito inacreditável. Elas se cuidam mais, estão atentas aos perigos de um ambiente que desconhecem. Se você for ver os números, os piores acidentes acontecem nos parquinhos dos prédios, onde as crianças estão mais relaxadas e não cuidam da sua segurança.

 

Como você percebe estas crianças na volta de cada aventura?

Elas voltam com muito mais autonomia, mais crescidas, maduras. Por terem que lidar com dificuldades, sem o colo dos pais, por estarem sozinhas num ambiente diferente, aprendem a cuidar mais de si. Passam a conversar mais, justificar suas idéias, argumentar, aceitar a proposta do outro. Sem contar que na natureza é preciso lidar com a frustração: nem tudo acontece como o previsto. Chove, tem mosquito, a comida não é um banquete. Teve uma vez que tinha uma cobra jararaca no meio do nosso caminho. Precisamos todos lidar com o medo de dormir com uma cobra do lado de fora. No fim, foi isso: uma história incrível para contar na volta!

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Leia aqui o emocionante depoimento de Regina Cury sobre a experiência de seu filho Theodoro, então com 10 anos, no acampamento de aventura Go Outside. O texto foi publicado na revista Go Outside, ao final da matéria “Pura Vida”, sobre o Acampamento Go Outside , em 23 de maio de 2016.

 

Para saber mais:

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