Natureza, inclusão social e família: sim, é possível!

16 set Natureza, inclusão social e família: sim, é possível!

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Série de entrevistas por Mariana Sgarioni

A publicitária Isabela Abreu conta como quer usar sua experiência de inclusão ao ar livre para levar crianças cegas à natureza.

“O olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. A frase de Leonardo da Vinci sempre fez todo sentido para a publicitária Isabela Abreu. Há cerca de 15 anos, ela não imaginava uma vida no escuro. Com um trabalho permeado de natureza por todos os lados – trabalhou por 8 anos na organização Outward Bound Brasil, instituição de educação ao ar livre, estava sempre guiando as mais diferentes pessoas para o contato com a terra, a água e o ar. Acreditava que o visual era tudo. Como adorava viajar, e sentia a necessidade de expandir esta oportunidade a todos, fundou, em 2001, a ONG Grupo Terra, em que levava deficientes físicos para a natureza, em trilhas e montanhas. Nunca tinha pensado em deficientes visuais – afinal, onde houvesse natureza, era preciso olhos para enxergá-la. Até que uma tia querida, professora de inglês da Associação Laramara, deu a ideia de um piquenique na praia com cegos. “Para mim, a natureza era 70% visão. Não fazia muito sentido este passeio, mas mesmo assim topei”, lembra.

Foi então que ela se surpreendeu com o resultado: “Ver aquelas pessoas correndo na praia, sem barreiras, foi uma libertação, um aprendizado de sentidos, para todos nós”, diz. O sucesso da empreitada foi tão grande que as turmas, em três meses, haviam quadriplicado.

A partir daí, durante seis anos, Isabela organizou expedições com pessoas com deficiência visual na natureza – seus grupos chegaram a 150 pessoas cegas, cada uma acompanhada por um voluntário. Até que se casou, teve uma filha, e passou a pensar em passeios com crianças ao ar livre. Assim criou, há cerca de um ano e meio, o projeto infantil “Brincando no Bosque”, um passeio semanal de mães e filhos no parque Alfredo Volpi, em São Paulo. A turma organiza viagens a sítios e já conta com seu primeiro acampamento na natureza, em parceria com a Outward Bound. Agora, Isabela quer incluir crianças cegas no grupo, assim como crianças com outras deficiências – o problema é que ainda sente uma certa resistência dos pais. “Nosso projeto é para a família inteira, por isso exige disponibilidade”.

Livres, sem amarras, e com uma infinidade de possibilidades, Isabela sabe bem que a terra e a floresta proporcionam às pessoas deficientes mais que inclusão: oferecem um admirável mundo novo. Agora é a vez das crianças cegas abrirem suas janelas da alma.

Por que levar crianças cegas para a natureza?

Primeiro, pelas mesmas razões que devemos levar as crianças que enxergam: a natureza propicia um melhor desenvolvimento motor, cognitivo, estimula criatividade, independência, socialização, entre outras coisas. As crianças cegas lidam com barreiras o tempo todo. Então elas podem experimentar, fora todas estas vantagens, a liberdade de correr livremente, por exemplo. Claro que elas seriam guiadas, mas em espaços abertos, como praias e campos, estas crianças podem sentir uma liberdade de expressão que em geral elas não tem por conta da limitação de espaço. A natureza possibilita ainda contatos com diferentes elementos, cheiros, texturas, sons. Pisar na grama, pular, correr, estimulam os sentidos e trazem uma interação com um ambiente que ela vive pouco.

Quais as dificuldades que isso implica?

Quando comecei o projeto, mandei um email para nove mães de crianças cegas e não tive nenhuma resposta. Mesmo com toda experiência que tenho com deficientes visuais, talvez não tenha conseguido convencer os pais dos benefícios que a experiência na natureza pode trazer à criança – algo que valha apena a energia, o deslocamento, a disponibilidade, o tempo investidos. Por isso, precisamos encontrar um espaço que seja fácil para os pais chegarem, este é o grande entrave. No passeio, para nós, a cegueira não oferece dificuldade nenhuma. A pessoa cega não precisa de rampa de acesso, como deficientes físicos, ela pode subir e descer escada, pode entrar em qualquer banheiro, enfim, ela faz qualquer coisa. Só requer um acompanhante.

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É preciso um treinamento especial a estes acompanhantes?

Apenas uma pequena explicação sobre técnicas básicas de condução, que podemos fazer pouco antes de iniciar o passeio. Também é muito importante que o acompanhante faça a descrição das coisas que estão vendo. Isso é algo que as próprias crianças que enxergam podem (e devem) fazer. Elas podem atuar como guias das crianças cegas e trocar experiências, sensações. A gente não precisa muito ensinar as crianças, isso acaba acontecendo naturalmente. Nós, como adultos, devemos apenas prestar a atenção para ver se a criança está participando, interagindo, e trazer a verbalização do ambiente, do que está acontecendo ali. Queremos tirar cada vez mais o papel do adulto nestes momentos, as crianças entre si aprendem muito mais sem a nossa interferência.

Qual seria o papel do adulto então?

O adulto deve monitorar, claro, para evitar acidentes e também para conduzir os passeios e atividades. Também orientamos dando o exemplo do que fazer: uma das coisas é colocar objetos nas mãos das crianças cegas para que ela tenham a sensação tátil. Entretanto, o sucesso vai depender também da criança, se ela vai gostar ou não de estar ali. Isso não tem a ver com nenhuma deficiência, e sim com a personalidade de cada um. Reforço que é preciso deixar as crianças interagirem mais com a natureza sozinhas, descobrindo as próprias brincadeiras, estimulando seus sentidos no seu tempo. Nosso grupo “Brincando no Bosque” atualmente conta com cinco mães e sete crianças. Apesar de não interferirem diretamente nas experiências dos filhos, a presença das mães é indispensável.

Por que?

Nosso grupo visa a família na natureza – e não apenas a criança. No início, contávamos com educadores, mas agora achamos que não há necessidade de mais adultos além dos próprios pais. Queremos que os pais também tenham prazer de estarem neste ambiente, interagindo com o meio e com os próprios filhos. Por isso, inclusive, recusamos a presença de babás ou acompanhantes. Trata-se de um programa de família, que exige a disponibilidade da mãe ou do pai pelo menos uma vez por semana. Outro dia um amigo me disse: “Quero muito mandar meus filhos!”. E eu respondi: “Mandar não! Você vem junto!” [risos]

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E o que vocês fazem no parque todas as quartas-feiras à tarde?

Somos hoje cinco mães e sete crianças, de 2 a 6 anos. Comecei com este grupo porque desde que minha filha nasceu sentia a necessidade de estar com ela na natureza (moramos na avenida Paulista, em São Paulo!) e não encontrava nenhuma atividade que nos acolhesse. Juntei algumas famílias amigas e partimos para o parque todas as quartas à tarde. Ao chegarmos, fazemos primeiro uma ciranda. Depois, uma trilha em que as crianças correm livremente. Elas escolhem do que vão brincar. Em seguida fazemos um piquenique, e, dependendo do clima, propomos alguma brincadeira: corre-cotia, pega-pega, ou ainda lemos uma história. Nós também viajamos eventualmente para sítios e praias. No ultimo final de semana, fizemos um evento inédito, em parceria com a OBB (Outward Bound Brasil): um acampamento de dois dias na floresta, com as crianças. Este foi um projeto piloto (a instituição já tem estes acampamentos, mas só para crianças maiores). Foi realmente uma experiência incrível: encontramos um sítio em São Lourenço da Serra, onde contamos com toda a segurança e a infra da OBB. Fizemos caminhadas, brincadeiras, piqueniques. Teve cachoeira, e o passeio acabou numa pequena fazendinha, com patos e outros animais.

Como você avalia a evolução de crianças com deficiências que já participaram do projeto?

Tivemos uma criança com comprometimento motor, por exemplo, e vimos muita diferença a cada passeio que ela participava. Ela corria com mais firmeza, se soltava, subia e descia escadas com mais segurança. Tinha mais confiança ao caminhar. O ambiente ao ar livre proporciona isso: o piso irregular, ter que ultrapassar troncos de árvores, encontrar barreiras naturais no caminho, desenvolve uma habilidade motora e de firmeza no corpo da criança. Esta menina no início caía a cada passo, depois se equilibrava melhor, e depois passou a descer os degraus na floresta sozinha. Em crianças com qualquer tipo de comprometimento, a influência do ambiente é sempre mais nítida. Nas outras é muito sutil, não se percebe tão rápido: você sabe que faz bem, mas não consegue ver tão explicitamente.

As mudanças são também comportamentais?

Com certeza, principalmente no que diz respeito à socialização, como é o caso do Lorenzo, por exemplo [leia ao final da entrevista o depoimento da mãe do Lorenzo]. No projeto Borboleta Azul, uma parceria entre a OBB e a Apae, estas mudanças foram bastante explícitas. O projeto visava resgatar, pelo contato com a natureza, a auto-estima de jovens com deficiência intelectual que estavam entrando no mercado de trabalho e se mostravam muito inseguros nas entrevistas de emprego. Fizemos um piloto em Campos do Jordão (SP), e desenhamos todo um programa de acessibilidade. Neste caso, o importante era simplificar as atividades e a comunicação. Tudo com diálogos simples e diretos. Era como explicar uma atividade para um estrangeiro: palavras fáceis, que não exigem muita complexidade. Algo que, se formos pensar, uma criança poderia fazer muito bem. Vimos lá muitas “borboletas azuis” saírem do casulo, voando, com liberdade, independência e autonomia.

Como fazer para participar do Brincando no Bosque?

O responsável pela criança deve entrar em contato comigo por e-mail (isa.isabela@terra.com.br) ou pela página do Brincando no Bosque do Facebook. O passeio é gratuito, só é preciso levar um lanche para compartilhar. É também necessária a disponibilidade do pai ou da mãe da criança para participar do passeio.

 


“NATUREZA É TERAPIA”

Marcia Fujimoto, mãe de Lorenzo, de 5 anos, que tem déficit de linguagem e de habilidades sociais, conta como o Brincando no Bosque vem fazendo toda a diferença para o desenvolvimento do filho

Aos 3 anos de idade descobrimos que o Lorenzo tem um atraso de desenvolvimento na linguagem e na socialização. Por algum tempo chegamos a desconfiar de autismo, o que atualmente foi descartado pelos médicos. É um déficit mesmo, não enquadrado em nenhuma deficiência específica.

Começamos um tratamento com fonoáudióloga e diversas terapias específicas. Na época, ele tinha sessões todos os dias depois da escola, o que era muito cansativo para ele e gerava ainda mais ansiedade.

Quando a Isabela teve a idéia dos passeios semanais no Brincando no Bosque topei mais por causa da socialização: eu achava que seria bom para ele interagir com outras crianças. Não imaginava que os benefícios iriam tão além.

No início, quando ainda havia educadores nos acompanhando, Lorenzo interagia pouco ou quase nada. Tinha dificuldades de concentração, não brincava com os outros, não participava das atividades. Era tímido, não falava. Com o tempo, e principalmente sem a presença dos educadores, percebi que ele foi se soltando.

Fico impressionada como ele mudou neste último ano. Ele participa de todas as atividades e até chama as crianças para brincar! Também percebi um desenvolvimento motor: o chão tortuoso fez com que ele se equilibrasse mais. Descobri que correr ao ar livre, subir em árvores, pendurar-se em cipós são exercícios neurológicos incríveis. No caso de uma criança com déficit, funciona como um complemento indispensável da terapia tradicional. Por isso acredito, sinceramente, que o contato com a natureza deve ser levado tão a sério como qualquer outra terapia – eles se desenvolvem muito jogando uma pedrinha na água, por exemplo. Sons, pesos, medidas, causas e consequências. A terapia é dele e o bem estar é da família inteira.”