O que as crianças esperam da sua cidade?

08 jan O que as crianças esperam da sua cidade?

ImaginaC, projeto da socióloga paulista Nayana Brettas, prevê que crianças se conectem, ocupem, pensem e transformem a cidade em que vivem

Por Mariana Sgarioni
Fotos: Bloco do Beco

08/01/2018

                                                                                “Deve ter alamedas verdes
A cidade dos meus amores
E, quem dera, os moradores
E o prefeito e os varredores
E os pintores e os vendedores
As senhoras e os senhores
E os guardas e os inspetores…
Fossem somente crianças”
(A Cidade Ideal, Chico Buarque – para o musical Os Saltimbancos, 1977)

Durante uma viagem pela Amazônia, a sonhadora Nayana Brettas – é assim que ela se define – teve um sonho concreto: como será que as crianças imaginam uma cidade bacana para viver? O que esta cidade deveria ter? Imaginando, imaginando, e imaginando ainda mais, ela teve a idéia de um programa que não poderia ter outro nome: ImaginaC. “Tudo tem a ver com a letra C: criança, cidade, comunidade. Imagina se você embarcasse num foguete ou numa nave e saísse por aí mudando, transformando”, diz.

23031626_1488094284635049_2154233355769723536_nO Imagina C é um programa, baseado em um jogo, em que a proposta é descobrir, sentir e mudar a cidade. O jogo físico conta com um kit com cartelas, mapas da cidade, diários de viagem, cartas para imaginar a cidade, blocos de desenho e outros materiais lúdicos para que a criança crie e proponha idéias de ações. O jogo virtual está em fase de desenvolvimento, mas contará com um aplicativo que pretende conectar crianças – e adultos – de bairros e cidades diferentes. “Os adultos vão perceber, por exemplo, se muitas crianças estiverem procurando árvores em determinados lugares e não encontrarem”, explica.

Socióloga formada pela PUC-SP, Nayana fez mestrado em Sociologia da Infância pela Universidade do Minho, em Portugal. Fundadora do “Criança Fala: Escuta Glicério” – uma iniciativa marcada pela escuta de crianças moradoras do bairro do Glicério, no centro de SP, ela dedicou o ano de 2017 a viajar pelo Brasil observando – e ouvindo, sempre – os pequenos. “O aprendizado com as crianças faz com que nós entremos em contato com nossa essência, que vamos perdendo no decorrer da vida. Ela está apenas dormindo dentro da gente. Mas continua lá”.

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24313332_1519695328141611_584600419218014110_oComo nasceu a idéia do Imagina C?

Eu estava em uma comunidade chamada Anã, na Amazônia. Cheguei no dia de um cortejo, muito especial a eles, quando apareceu um padre falando da importância do cuidado com a natureza. Neste mesmo dia, segui minha intuição que dizia que era preciso fazer algo para conectar as pessoas com o lugar em que elas vivem. E o melhor jeito de fazer isso é ouvindo as crianças, elas ativam uma rede e fazem com que todos se envolvam. Então pensei num jogo em que seria possível conectar-se com pessoas na rua. No Imagina C as crianças saem falando com todo mundo, buscando a história do lugar, objetos, e vão registrando tudo num diário que pode ser compartilhado depois. No aplicativo que está sendo desenvolvido será criada uma rede em que os participantes se comunicam e trocam experiências. A idéia na verdade é juntar as pessoas para trabalharem juntas. Fazer uma rede maravilhosa de pessoas vivendo seus sonhos.

Você fala muito sobre a escuta das crianças. Qual a importância desta escuta para as cidades?

Há 13 anos que venho desenvolvendo trabalhos de escuta infantil. Desenvolvi uma metodologia de escuta das crianças chamado “Criança Fala”, que partiu do meu trabalho no Glicério, em São Paulo. As crianças, em primeiro lugar, precisam ser reconhecidas como cidadãs. Portanto, é preciso escutar as crianças, de forma lúdica e respeitosa, e entender de que maneira podemos transformar esta escuta em ações. Ouvindo as crianças, por exemplo, descobrimos no Glicério que, mais do que espaços públicos, elas queriam banheiros. Simples assim. Lugares que elas pudessem se olhar no espelho, ficar sozinhas. Isso nem passava pela nossa cabeça antes.

24831242_1521923314585479_7109131364879111491_oComo foi este trabalho no Glicério?

O Glicério é uma região de bastante vulnerabilidade no centro de São Paulo. O trabalho começou num lugar de cortiços, onde dezenas de famílias viviam em condições muito precárias – quando cheguei lá, nunca me esqueço de um corredor enorme onde vivia muita gente junto com muitos ratos. Terrível. O projeto começou nesse cortiço onde moravam 18 pessoas. Me conectei com crianças, trabalhando com as famílias, ouvindo quais as necessidades, como elas iam para a escola. Na primeira vez que levamos as crianças ao teatro, elas não queriam sair do banheiro, nem queriam saber da peça. Porque elas não sabiam o que era ter um banheiro em casa. Fiquei mobilizada com a condição dessas pessoas e o meu projeto era incluir o olhar das crianças na reforma do lugar. No início, lembro que só ficávamos separando briga das crianças – porque eles viviam em um ambiente violento, em espaço reduzido, com a polícia truculenta, sem a figura do pai. Elas reproduziam isso. Então fomos percebendo que as mães também queriam ser incluídas – as crianças eram o fio condutor. Escutando a todos, conseguimos fazer exposições culturais, e reformar o lugar. As crianças criaram criaturas fantásticas com poderes de salvar o mundo. Nessas criaturas elas conseguiam expressar diversidade. Hoje são três ruas no Glicério, casas coloridas, com mais de 400 crianças pintando, artistas grafitaram e doaram seus trabalhos. Fazemos cortejos de maracatu, incluímos as escolas locais, e as crianças vão criando os temas.

Por que trabalhar com crianças?

Nasci prematura, de seis meses. Fiquei muito tempo numa incubadora, sem contato com ninguém, lugar em que tive meu primeiro vínculo. Portanto, cresci sem permitir que as pessoas me abraçassem, me tocassem. A primeira vez que alguém sentou no meu colo foi uma criança – e foi uma experiência incrível. Porque elas permitem essa aproximação. Quando participei de um primeiro projeto de leitura com crianças, pensei: encontrei meu mundo. Entendi por que eu não me sentia compreendida antes. Porque adultos muitas vezes estão longe dos seus sonhos. E uma cidade que acolhe a criança, acolhe sonhos, acolhe o amor.

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