Por uma educação mais pé no chão

07 mar Por uma educação mais pé no chão

A psicóloga Beatriz de Paula Souza, responsável pelo serviço de Orientação à Queixa Escolar, da Universidade de São Paulo, vem estudando os efeitos de aprender – e trabalhar – ao ar livre

07/03/2018

 

Cheguei para fazer a entrevista com Beatriz de Paula Souza, psicóloga e mestre em psicologia escolar pelo Instituto de Psicologia da USP, e logo veio o convite: “Vamos conversar lá fora?”

Foi sobre duas esteiras, em meio às árvores frondosas da Cidade Universitária, que aconteceu este bate-papo com Bia e com o psicólogo João Ricardo Teixeira Leite de Souza, também mestre em psicologia da educação, pela PUC. Bia coordena o serviço Orientação à Queixa Escolar, de atendimento psicológico para crianças e adolescentes em dificuldades e sofrimentos na escola. João é um dos psicólogos que participaram do programa.

Dar a entrevista em um gramado, de pés descalços, não foi capricho nem coincidência: eles vêm experimentando estar “do lado de fora”, sem paredes, em meio à natureza, tanto nos atendimentos às crianças como em suas próprias práticas e grupos de estudo. Na conversa a seguir, Bia e João contam que efeitos têm percebido – em si mesmos e nos outros –, e os estudos que têm feito a partir disso.

Quais são os principais motivos de queixas escolares? As crianças também são ouvidas?

Uma queixa escolar é produto de uma rede com vários agentes que se relacionam. Quando uma criança é encaminhada para atendimento, é preciso olhar para esse todo: escola, professores, pais, criança… Se não levarmos em conta essa complexidade, podemos acabar aprofundando sofrimentos. E o que existe é alguém sofrendo. Um pedido de ajuda. Na maioria das vezes, as crianças que chegam ao nosso atendimento não conseguem se vincular com o mundo da sala de aula: estão dispersas, desmotivadas, desinteressadas, não fazem lição, ficam correndo…

Como surgiu a ideia de atender as crianças e fazer os encontros dos profissionais ao ar livre?

No final de 2015, uma das psicólogas do serviço decidiu fazer a festa de despedida das crianças (elas ficam por volta de três meses no programa), ao ar livre. E ela percebeu que as crianças ficaram mais relaxadas, que o clima do encontro tinha sido muito afetuoso e rico. A partir disso, começamos a experimentar estar do lado de fora, tanto com as crianças quanto em nossos estudos e formações. E percebemos que isso era benéfico para elas e para nós. Todos se sentiam mais à vontade, houve uma explosão de potências: tranquilidade, criatividade, inteligência, sociabilidade, vitalidade. Nos demos conta de que somos prisioneiros de alguns mitos sobre o que é considerado uma experiência de aprendizagem eficiente.


Que mitos? Poderia explicar melhor?

O espaço de uma sala de aula é montado especialmente para privilegiar a racionalidade. Você fica fechado, quieto, tentando focar integralmente em um assunto, É como se os outros sentidos, o corpo e os afetos “atrapalhassem” a luz da razão. Mas, estando ao ar livre, percebemos o quanto a natureza nos convoca integralmente, nos dá a oportunidade de aprender de outra forma. Ao ar livre, os imprevistos e as variáveis podem ser parte do aprendizado e é bom que seja assim. Porque, na vida, não se pode isolar sempre todas as variáveis. Muitas vezes, em nossos atendimentos, quando uma criança queria ou pedia para ir lá fora, interpretávamos esse desejo como uma resistência ao trabalho, uma dificuldade de entrar em contato consigo mesma ou com os conflitos que ela vivia. O que percebemos é que as crianças podiam estar simplesmente indicando outro caminho: elas estavam nos alertando para a ausência de momentos assim, ao ar livre, em  suas rotinas, e nos dizendo que é mais difícil solucionar os problemas estando emparedadas.


Nesse momento, João intervém na conversa:

Ao nosso atendimento chegam crianças com questões como timidez, dificuldade para se relacionar, agressividade, e inclusive diagnósticos como hiperatividade, transtornos de déficit de atenção e até com laudos de deficiência intelectual. O que vimos é que no caso das crianças a quem experimentamos atender, recentemente, oferecendo liberdade de movimentos, espaços abertos e um ambiente de acolhimento, com atividades que interessavam a elas, nenhum desses “diagnósticos” se sustentaram. Estar ao ar livre foi, para muitas delas, um disparador de aprendizados e saberes que dificilmente aconteceriam na sala de atendimentos. As crianças se engajavam e participavam das atividades, às vezes deitadas em cima de um galho. Vimos que não existe uma única maneira de prestar atenção, uma única forma de aprender. E se isso for reconhecido e acolhido, esse aluno terá uma possibilidade bem maior de interessar-se e aprender na escola. Claro que aqui há uma atenção e um ambiente que muitas vezes não pode ser reproduzido lá. O que nos leva a pensar que há muito para ser revisto na escola.

Como trabalhar com as escolas nesse sentido?

As queixas que chegam aqui, para professores que querem uma classe paradinha, devem mesmo ser enlouquecedoras. E os professores têm desenvolvido um alto grau de adoecimento também: eles estão presos a regras da instituição, com mil responsabilidades, em salas lotadas, enfim, eles também são vítimas. O que vemos é uma proposta de funcionamento escolar que muitas vezes produz desatenção e falta de vínculo. Que gera sofrimentos. E rotinas que também não ajudam as crianças. Em 2017, fizemos um levantamento com as crianças atendidas. Os resultados são ainda preliminares, mas têm indicado um nível alarmante de confinamento e de solidão.

Que dados apareceram?

As crianças ficam um tempo enorme em atividades solitárias (TV, vídeo games etc.). E estão dentro de quatro paredes a maior parte do tempo, mesmo quando fazem atividades extracurriculares. Dos 26 atendidos estudados, apenas três, ou seja, 11,5%, tinham rotineiramente atividades coletivas lúdicas em que estavam fisicamente ativos. Então você percebe que elas precisam de espaço e de outras crianças para se relacionar e brincar. E a escola seria o local ideal para isso. Mas quando chegam na escola, elas são obrigadas a ficar dentro da sala de aula e sem conversar! O confinamento tem sido nossa produção social, tem sido nossa política pública. E isso precisa ser transformado, porque o que estamos gerando é sofrimento, adoecimento. Há um grito de vitalidade que fica abafado. E quando as crianças se rebelam, vão mal na escola, a solução que lhes é oferecida é estudar mais. Ou pior, tentar contê-las com remédios.

Quais as consequências dessa medicalização?

Em geral, a partir da alfabetização, as crianças são colocadas em uma situação que parece dizer: “pronto, agora acabou a brincadeira, a coisa é séria”. E ficam cada vez mais sentadas, confinadas, como se o brincar não ensinasse a elas, como se estudar fosse um castigo. Mas como completar o ciclo da infância? Quando as crianças se movem, querem explorar a terra e subir nas árvores, quando elas falam e se agitam, o que elas estão buscando é saúde! Isso não é doença! A medicalização tem se alimentado vorazmente do confinamento, da necessidade de manter as crianças fechadas, sossegadas, quietas. O resultado é um festival de diagnósticos de dislexia, TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), Transtorno Opositor Desafiador (TOD), e a indicação de medicamentos, como a Ritalina (Cloridrato de Metilfenidato), que é uma droga perigosa, tratada muitas vezes como se fosse inofensiva. Esse remédio tem efeitos nocivos sobre a criatividade, é ruim para o coração e o crescimento, pode servir como disparador de outras doenças. Meu conselho para pais e professores é: antes de aceitar qualquer diagnóstico certifique-se de como foi feito, em que condições. Porque estão ocorrendo muitos absurdos. Precisamos, todos, nos responsabilizar coletivamente e mudar o que estiver ao nosso alcance: desde as políticas públicas, até os nossos passeios em família; o nosso modelo urbano, nosso modelo de ensino e até de atendimento psicológico. Cada um precisa pensar dentro de suas condições: pais, professores, diretores de escola, políticos: o que estamos oferecendo às crianças? Como  inventar soluções? Talvez um caminho seja resgatar nossas próprias experiências de contato com a natureza.

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