As montanhas e o menino

Como uma expedição na natureza operou uma transformação em um jovem de 17 anos

08 Sep As montanhas e o menino

Uma antiga música do John Denver fala de um jovem adulto que nasce aos 27 anos de idade, ao voltar para casa – lugar onde nunca havia estado – e escalar as Montanhas Rochosas canadenses. Ela trata do deslumbramento desse jovem com a natureza e com a experiência que nela viveu. Como educador ao ar livre, já testemunhei e ouvi relatos sobre vidas transformadas pelas experiências em rios, mares e montanhas. Para tentar compreender um pouco melhor esse fenômeno, passei dois anos no ambiente acadêmico, fazendo um mestrado.

A pesquisa que realizei buscou avaliar as eventuais mudanças atitudinais em alunos da escola experiencial Outward Bound Brasil (OBB), que se utiliza de incursões desafiadoras à natureza, como caminhadas e remadas de múltiplos dias, conduzidas por instrutores com experiência, para educar.

Grupo de pessoas escalam uma montanha na Via ferrata.

Grupo de escalada na Via Ferrata. Foto: Arquivo pessoal de Flavio Kunreuther

Nas várias entrevistas com alunos dos cursos, conheci um jovem de aproximadamente 17 anos que acabava de concluir seu percurso pelas montanhas da Serra da Mantiqueira. O menino era muito forte, cheio de energia, e com uma fala um pouco confusa, repleta de gírias. Manifestou satisfação em concluir o curso, de forma semelhante aos seus colegas. No mesmo dia, conversei também com os instrutores do curso. Estavam exaustos, afinal, tratava-se de um grupo de adolescentes e eles tinham a responsabilidade de trazer todos bem até o final. Ademais, havia o tal rapaz que tornava o trabalho mais intenso.

Findo o curso, todos voltaram para suas casas. Passados alguns dias, a psicóloga e diretora do serviço de acolhimento onde morava o jovem que entrevistei ligou para a sede da OBB.
“O que vocês fizeram com o menino?”
“Como assim, algum problema?”
“Problema? Não! Vocês mudaram esse garoto. Não sei o que fizeram, mas ele voltou outro!”.

Não perdi a oportunidade e entrevistei a psicóloga. Ela relatou que a decisão de aceitar o convite e enviar o jovem ao curso não tinha ambições para além dos 10 dias de descanso que isso traria a todo mundo no abrigo institucional onde ele morava, que seriam muito bem vindos. O rapaz dificultava a vida e o trabalho de todos por lá, além de infernizar seus colegas. Ao retornar, contudo, demonstrou um comportamento diferente. Passou a tratar seus companheiros melhor, quis ajudar nas tarefas da cozinha e, pela primeira vez, aceitou começar o processo de preparação para a sua saída desse lar, uma vez que estava se aproximando da idade em que teria de fazê-lo. A caminhada nas montanhas tinha sido o único evento diferente na sua vida em bastante tempo.

Pesquisar não é apenas coletar os dados, mas tentar interpretá-los. O que esse menino, o rapaz da música do John Denver e tantos outros viram em suas experiências na natureza? Certamente há mais de uma explicação possível. A elucubração a seguir é apenas uma das possibilidades.

Quem não se lembra, ou nunca viu, jovens cheios de energia e pouca adequação a colégios tradicionais? Aqueles para quem a carteira parecia eletrificada? Para jovens assim, é difícil florescer no ambiente escolar. Sua energia não tem vazão suficiente, suas habilidades são pouco valorizadas, seu modo de agir pode até ser interpretado como ameaçador.

Homem auxilia criança em escalada.

Flavio Kunreuther acompanha e auxilia criança em escalada na Serra do Cipó. Foto: Arquivo Pessoal

Noções rudimentares de psicologia nos ensinam que todos precisamos nos perceber como pessoas de valor, e que fazemos isso pelo olhar do outro, numa relação dialética. Se um jovem vive em um ambiente em que suas habilidades não lhe auferem a possibilidade de vicejar, como irá enxergar-se como valoroso? Como sair dessa cilada?

O menino, que não via utilidade ou valor para suas habilidades na escola ou no abrigo, recorreu a elas nas montanhas. Carregou mais peso que seus colegas, ajudou-os nas subidas. Ao final do dia, com todos esfalfados e inertes, foi procurar água para trazer ao acampamento, entre outros usos da sua energia. Mais que isso: arriscou-se na cozinha e foi apreciado também por essa tarefa.

Nem tudo foram flores. Seu linguajar ríspido causou conflito, que teve que ser dirimido. Deu trabalho também aos educadores de campo. Mas pôde ajudar os outros, em vez de ser sempre ajudado e repreendido. De repente, era útil, valoroso! E essa é uma sensação poderosa.

Os educadores de campo, ao final do curso, não sabiam que haviam facilitado uma transformação potente. A psicóloga do abrigo não tinha ideia do valor da experiência que proporcionara ao jovem, simplesmente por concordar com sua ida às montanhas. Tampouco o jovem sabia, ao retornar, que uma chavinha havia mudado em sua cabeça. A chavinha que diz: “tenho valor!”.

Esse não é o único perfil de jovem que se beneficia com uma experiência educacional intensa na natureza. É apenas uma das possibilidades. Tampouco são todos os que passam por transformação significativa após uma vivência assim, embora relatos de mudanças significantes sejam recorrentes.

Mas, há mais! A relação dialética não se encerra apenas entre o jovem, seus pares e educadores. Acontece também entre ele e o local em que vive a experiência. Na música de Denver, o rapaz que inicialmente se deslumbra com as montanhas, posteriormente se indigna com suas cicatrizes. A natureza o despertou e ele há de defendê-la.

Precisamos promover o encontro dos jovens com nossas florestas, unidades de conservação, parques, praças, por meio de experiências educacionais que os transformem para, ao fazê-lo, despertar a consciência necessária para que a degradação ambiental não tenha mais lugar em nossa sociedade.

 

Foto de Flavio Kunreuther, um homem branco de barba grisalha. Ele usa chapéu e uma camiseta azul de mangas longas e está sentado no meio de uma floresta.

Flavio Kunreuther

Educador físico, educador por meio de atividades na natureza há duas décadas e pai de dois pequenos montanhistas e canoístas.

* A opinião retratada no texto não reflete necessariamente a do programa Criança e Natureza