Contexto das Infâncias Urbanas

O pesquisador e jornalista Richard Louv, co-fundador da Children & Nature Network, cunhou o termo Transtorno do Déficit de Natureza para descrever o fenômeno atual da desconexão entre a criança e a natureza e os consequentes impactos negativos na saúde e bem-estar das crianças e também da Terra. O contexto que apresentamos a seguir explica parte desse fenômeno e é o que justifica a existência do programa Criança e Natureza.

NA CIDADE

A sociedade contemporânea é predominantemente urbana. As crianças, em sua maioria, nascem e crescem em contextos urbanos. No Brasil, 84% da população vive em cidades (IBGE, 2010) e 47% das pessoas não se sentem seguras na cidade em que moram (IBGE, 2010).

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O modelo atual de crescimento das cidades e a disputa pelo uso e destino dos espaços livres compromete a oferta e acesso a áreas verdes, que estão sendo substituídas por edificações e os espaços externos são cobertos e impermeabilizados por cimento. Com isso, restam poucas oportunidades de estar em áreas naturais públicas e privadas, em casas, prédios, escolas, praças e parques. Assim, há menos terra, grama, formigas, pauzinhos e folhas para as crianças brincarem.

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O confinamento também decorre do fato de que as pessoas e a natureza estão perdendo espaço para os veículos motores. Em 2017 havia um carro para cada 4,8 brasileiros (Sindipeças, 2018). A rua deixou de ser espaço de encontro onde a criança pode brincar e andar livremente.

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A depender do contexto social, econômico e territorial, a experiência de cidade, de escola e de família varia. Isso também é verdadeiro para o envolvimento das crianças com o espaço público e natural. Há múltiplas infâncias e, consequentemente, múltiplas formas de vivenciar encontros com o outro e com a natureza.

Por causa da falta de segurança, nos diversos contextos socioeconômicos, as famílias priorizam manter as crianças confinadas em ambientes fechados e privados. Apesar dessa atitude representar uma forma de cuidado, o fato é que isso mantêm as crianças apartadas dos espaços públicos e áreas abertas. Assim, elas têm poucas oportunidades de brincar de forma não dirigida e gradualmente experimentar uma vivência autônoma da cidade, caracterizada pela liberdade de movimento e de ir e vir.

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São Paulo tem apenas 2,6 m2 de áreas verdes por pessoa. O padrão internacional recomenda 12 m2. A média geral já é considerada baixa por especialistas, mas alguns bairros, na região central e na periferia, enfrentam paisagens ainda mais cinzentas. Mesmo tendo a maior área de mata da cidade, o bairro de Parelheiros, por exemplo, tem 0,29 m² de praças e parques por habitante. (Agência Estado, 2012)

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NA SAÚDE

Um amplo conjunto de pesquisas relacionam a falta de oportunidades de estar e brincar na natureza com o aumento da prevalência de problemas de saúde entre crianças e adolescentes, como obesidade, hiperatividade, baixa motricidade, pouca habilidade física, miopia, doenças cardiovasculares e síndrome metabólica. (Alana e Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019)

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Uma a cada três crianças brasileiras estão com excesso de peso ou são consideradas obesas. (IBGE, 2010)

Atividades ao ar livre reduzem o risco de ocorrência de miopia em crianças. (Ophthalmology, 2008

Crianças tomam cada dia mais medicamentos, seja para acalmá-las ou para animá-las.

CONSERVAÇÃO DA NATUREZA

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A humanidade enfrenta desafios cada vez mais concretos e próximos em relação ao seu bem-estar e sobrevivência na Terra. O atual modelo de desenvolvimento econômico está colapsando os ambientes naturais, fundamentais para todas as formas de vida que compartilham o planeta.

Entre as estratégias que temos para lidar com esse contexto, está cada vez mais claro que precisamos contar com o sentimento de afiliação entre o ser humano e a natureza. Afinal, só cuidamos e conservamos aquilo que amamos. A infância é um período da vida ímpar para que possamos desenvolver esse vínculo tão essencial para a sobrevivência da espécie humana e também da Terra (Children & Nature Network, 2019).

RISCO

Para muitos adultos, estar na natureza é sinônimo de perigo. O nosso medo impede que a criança brinque ao ar livre, desenvolva sua capacidade de avaliação e tenha liberdade e autonomia para explorar e arriscar. Sem a experiência do risco benéfico, a criança não exerce seu instinto de chegar adiante, indo além do que já dominou, descobrindo novas maneiras de usar o corpo, estar no mundo e lidar com sucessos e fracassos.

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TELAS

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Uma tendência é comum a todas as infâncias: as crianças habitam cada vez mais as telas. Quando perdemos a rua e o espaço público como lugar de convivência entre pares, e precisamos de algo que controle o impulso da criança por movimento e expansão, o uso dos dispositivos digitais ganha força.

No contexto da economia da atenção e da intoxicação digital, meninos e meninas têm cada vez menos oportunidades de construir um repertório ligado à ação no mundo real, por meio de explorações e descobertas guiadas pelo corpo em movimento ou em contemplação. Sem esse repertório é muito difícil desenvolver mecanismos de autorregulação que modulem o uso da tecnologia e a conexão com o mundo natural de maneira saudável e produtiva.

85% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos de idade são usuárias de internet e, destes, 93% acessam a rede por meio de telefones celulares, dispositivo cujo uso é cada vez mais habitual nessa faixa etária. (TIC KIDS ONLINE, 2017).

TEMPO

O cotidiano nas cidades é uma corrida contra o relógio. As famílias, incluindo as crianças, têm seu tempo cronometrado para dar conta dos afazeres do dia a dia. Mesmo com muita vontade, é um desafio encontrar tempo livre para passear e brincar.

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CONSUMO

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As crianças são estimuladas ao consumo cada vez mais cedo. Muito expostas à mensagens publicitárias, se convencem de que é preciso ter o brinquedo ou videogame novo e a roupa da moda. Paralelamente os adultos imaginam que é necessário consumir ou investir muitos recursos para proporcionar experiências significativas para as crianças. A natureza próxima, aquela ao alcance da mão na calçada, praça ou terreno vizinho, oferece o que realmente a criança deseja, em seu corpo e alma: espaço e elementos para ser autora de seu próprio brincar.