“Brincar é essencial. E todos temos essa centelha”

Amowi Phillips, que nasceu em Gana, na África, e hoje é professora na Whitworth University, em Washington, fala sobre a importância de criar cidades mais verdes e amigáveis para as crianças
Amowi Sutherland Phillips, coordenadora da Mmofra Foundation, em Gana, uma mulher negra om turbante azul na cabeça que sorri para a câmera

18 set “Brincar é essencial. E todos temos essa centelha”

Amowi Sutherland Phillips é da cidade de Accra, capital de Gana. Advogada de formação, ela lidera um projeto pioneiro no design de espaços centrados na criança. Sua inspiração vem do ensaio fotográfico “Playtime in Africa”, que registrou jogos infantis imaginativos em Gana, e foi produzido por sua mãe, Efua Sutherland, escritora, educadora e ativista pelos direitos das crianças. “Queremos projetar lugares que alimentem o tipo de alegria representada no livro, ao mesmo tempo que abordamos a rápida urbanização da cidade, sua grande população de jovens e a falta de espaços públicos seguros para crianças”, conta. “Sempre volto a esse livro, porque ainda hoje me surpreende que, nos anos 60, uma pensadora africana estivesse tão interessada em mostrar o brincar como tema chave, não só para o desenvolvimento infantil, mas mostrar o jogo e a criatividade das crianças como algo central no desenvolvimento de uma nação”, diz.

Por Carolina Tarrío

 

Como construir espaços e cidades melhores para as crianças, e por que isso é importante?

Vou responder a isso a partir de uma perspectiva africana. A África tem hoje a população mais jovem do mundo. Em algumas décadas, a maior parte das crianças abaixo dos 18 anos estará na África. Essas crianças vão viver em cidades ou no perímetro urbano, e por isso é tão importante que esses locais sejam mais verdes e brincantes. É importante em todo o mundo mas, neste contexto particular, assume uma dimensão ainda maior na África. Precisamos olhar não só para espaços específicos onde as crianças possam brincar, mas desenhar elementos na cidade toda com esse fim. A maioria dos países africanos não têm feito isso bem. Uma busca online por parques infantis ou museus rende muito pouco entre o Cairo e a Cidade do Cabo. Em nossas cidades, existe uma pressão imobiliária enorme, e parte do nosso advocacy com a Mmofra Foundation, organização na qual trabalho, é tentar manter e criar parques e locais amigáveis para as crianças.

Como vocês têm feito isso?

Entre 2018 e 2019, fizemos alguns protótipos interessantes para tornar os mercados de Accra mais brincantes. Há mercados por toda a África, e eles são dominados por mulheres. Há também ali muitas crianças: elas passam tempo ajudando suas mães, ou frequentam o lugar depois da escola. Os mercados não são projetados para as crianças, mas as crianças sempre irão brincar. Então, essa é uma ideia da qual gosto muito: tornar os mercados brincantes, sem segregar as crianças a um local específico.

Que metodologia usaram para isso?

O primeiro passo foi falar com as mulheres que organizam os mercados e explicar nosso propósito. Conseguimos também voluntárias entre 13 e 25 anos, que ajudavam suas mães ou tinham crescido nessas áreas. Pedimos a elas que contassem sobre suas próprias experiências crescendo no mercado, e dali surgiram alguns conceitos básicos de design. Não é simples fazer algo em um local de grande circulação de pessoas: você pode colocar livros numa prateleira, mas nada garante que no dia seguinte ainda estejam lá. Nem tudo sobrevive nesse tipo de espaço intenso. Então, muitas de nossas intervenções foram pensadas de modo a não serem retiradas facilmente: pinturas no chão, elementos pendurados do teto, identificar com cores pilares em diferentes áreas do mercado, quase como uma forma de sinalizar para as crianças onde brincar. Também montamos estruturas estimulantes com elementos encontrados no próprio mercado, como remos de madeira, bacias ou cordas. Acho que foi uma estratégia bem-sucedida. Você precisa entender a dinâmica do ambiente e trabalhar com essa dinâmica em vez de esperar que as pessoas mudem.

 

Muito importante isso: saber trabalhar com as dinâmicas estabelecidas, em vez de vir de fora e querer mudar tudo…


Sim, porque se fizer isso, no minuto em que você sai é o fim do projeto. Você tem que fazer com que o benefício do que foi alterado seja visto e reconhecido por todos os que participaram. Envolver as pessoas, seus filhos, para que eles entendam as mudanças e possam mensurá-las. A parte mais complexa de um projeto é manter as pessoas envolvidas, e zelar pela manutenção do que foi realizado. Temos a mesma experiência com um parque que revitalizamos: uma energia maravilhosa no início, por dois, três meses. Mas você volta um ano e meio depois e nem sempre é o que se pretendia. Por isso, é essencial que o governo das cidades ouça as pessoas e faça junto, mas sem se isentar da manutenção. O ideal é você ter uma ONG ou lideranças locais participando desde o início, para trazer criatividade, para explicar suas necessidades, que é algo que não vai custar nem um centavo a mais e traz vários benefícios. Mas a cidade depois tem de assumir a manutenção.

 

criança brinca co um jogo de encaixar construído com elementos naturais

Que tipo de indicadores ou medidas usam para avaliar o impacto dos projetos? Como gerar evidências das mudanças?


Nós tentamos levantar evidências, embora isso demande tempo e recursos. Existe um parque que a fundação administra, Mmofra Place (mmofra significa crianças em acã, uma das línguas mais faladas em Gana), que usamos como um espaço “maker”, no qual podemos criar e desenvolver estruturas ou ideias para testar e replicar. Ali trabalhamos, por exemplo, com madeira que vem de podas ou árvores caídas e removidas. Você pode dar uma nova vida a esse material, com sensibilidade para a cultura e o ambiente local. Se uma criança está sentada em um banco que é na verdade cavado em um pedaço maior de madeira, ela tem a chance de aprender sobre seu ambiente, saber o nome  daquela árvore, ter um aprendizado tátil sobre ela. Eu acho que são mensagens de desenvolvimento realmente importantes para crianças, além do tipo de uso prático do objeto. Criamos com madeira recuperada também versões gigantes de um jogo muito popular na África, chamado Mancala. Você deixa lá e as pessoas se envolvem, você vê um avô jogando com seu neto, você cria possibilidades de interação. Isso também é uma medida de sucesso.

 

Sim, e uma forma de redescobrir brincadeiras entre gerações e perpetuar cultura…

Exatamente! Porque esse tipo de manutenção do conhecimento cultural entre as gerações, se não for estimulado intencionalmente, se perde. Existe uma brincadeira que era extremamente popular quando eu era jovem (chamada Che Che Kule) e alguns anos atrás, trabalhando com crianças no parque, perguntamos a elas se a conheciam. Para mim foi quase inacreditável quando disseram que não. Como perdemos isso em uma geração? Então, você tem de pensar em maneiras de transmitir esse conhecimento. Agora estamos resgatando uma brincadeira que era feita majoritariamente por meninas e mulheres, chamada Ampe, na qual se pula, bate palmas e posiciona os pés. É um jogo ativo de estratégia e de cooperação. Vamos organizar um festival do jogo no parque, com diferentes equipes, desde crianças, adolescentes até mulheres maduras e idosas. Vamos pedir a elas que joguem e compartilhem suas histórias: como o jogo evoluiu? Como ele as faz sentir? É algo muito poderoso, que gera engajamento intergeracional e também entre pares. É extremamente fortalecedor.

 

Os espaços públicos não são apenas o espaço físico, mas como você os ativa. E muitas vezes as pessoas nem imaginam atividades que poderiam existir neles… 


Sim, as pessoas têm que desenvolver hábitos de uso, de diferentes usos, nesses espaços urbanos. Eu às vezes eu me pergunto: como isso comece? Como incentivar esses usos? Tentamos manter um espaço verde e às vezes as pessoas ficam lá como se não houvesse nada para fazer. Se trata de um oásis longe da fumaça do trânsito, e só por isso você já está recebendo benefícios, por ver os pássaros, mas espaços verdes são muito mais: seu filho pequeno terá uma aventura fantástica apenas andando e olhando para as folhas e brincando, algo que para o público em geral não é óbvio. Mostrar isso é um desafio constante. Entusiasmar as pessoas e informá-las de que lugares como esses são importantes para a saúde e que também podem ser realmente bons e divertidos de se estar.Como desenhá-los de modo a atrair as pessoas, propor formas e atividades que elas ainda nem conhecem, mas das quais gostariam? E não só para crianças pequenas. Tem um grupo demográfico frequentemente negligenciado, que é a adolescência. Como fazer espaços convidativos para eles? Como fazer para que sua presença não gere desconfiança? O espaço dos adolescentes precisa ser defendido. Existe um parque de skate construído recentemente, por exemplo, que estava funcionando muito bem, com muito sucesso, mas alguém veio e quebrou, sob o fundamento de que há uma disputa de terras. Vi uma imagem extremamente poderosa de uma garota com um skate, ajoelhada no chão com a pista danificada atrás. Nossas cidades precisam ser melhores para os jovens.

 

criança está em cima de um tronco, em um brinquedo naturalizado, de onde conversa com a mãe no Mmofra Park, em Gana

Existe uma disputa territorial enorme também na América Latina, que faz com que os espaços públicos diminuam ano após ano. E há, além da disputa pela terra, outra por permanência. Muitas vezes as pessoas expressam um sentimento de que alguns grupos devem sair para que outros possam usar o lugar, como se certos usos fossem “melhores” ou mais bem vistos que outros. Pode falar sobre isso?


Exato, de certa forma, acho que os adolescentes estão sempre pagando o preço, aparecem como uma influência problemática. É muito difícil romper esse tipo de concepção, e colocar em um espaço pessoas de diferentes estratos sociais, idades, backgrounds. No Mmofra Place, uma das coisas que conseguimos alcançar é uma espécie de “influência democratizadora”: ele está em um lugar de renda muito mista e antes da pandemia abríamos o parque uma ou duas vezes por mês gratuitamente (o ingresso custa o equivalente a R$ 4,20). Nesses dias, tivemos sempre o cuidado de oferecer uma programação de qualidade. Então, há livros à disposição das crianças para ler, e também atividades e aulas, como dança, instrumentos ou algo científico. Vira uma espécie de museu ao ar livre. Fizemos isso por pelo menos 10 anos. E observamos que muitas vezes eram as crianças com menos recursos que podiam mostrar melhor sua criatividade. Elas não tinham acesso a brinquedos comprados em lojas, então faziam seus próprios carrinhos e mostravam habilidades com as quais crianças com um histórico de recursos melhor poderiam aprender. Foi uma boa maneira de eliminar barreiras. 

 

Você acha que existe algo no brincar que nos une como seres humanos? Ou acredita que há barreiras espaciais, temporais, culturais?


Acredito que existe algo essencial no brincar, e que todos nós temos essa centelha. Brincar une as pessoas em qualquer lugar. É um pouco como a música, é uma linguagem. É uma forma de comunicação que passa através de barreiras e sabemos disso porque as crianças nos mostram todos os dias. Se não interferirmos com as crianças, elas vão nos provar que brincar é essencial, não importa de onde venham, nem quem sejam.