Quando o rio é uma ameaça e o ouro vem banhado em dor

Ação no Supremo consegue suspender norma que permite venda de ouro extraído de maneira ilegal. A medida vai proteger as crianças e adolescentes da Amazônia
Crianças brincam na beira de um rio, na Amazônia

04 maio Quando o rio é uma ameaça e o ouro vem banhado em dor

“Tenho medo do rio. Faz medo pegar malária. Diarréia. Doença. Muita doença”, disse uma criança de 10 anos, da etnia Munduruku, em vídeo do portal de notícias Lunetas, do Instituto Alana. A água limpa, que antes garantia vida e abundância, se transformou em fonte de contaminação e vetor de doenças gravíssimas nos últimos 10 anos. Tudo devido ao garimpo ilegal em terras indígenas. Um estudo realizado pelo WWF, em parceria com a Fiocruz, na Terra Indígena (TI) Sawré Muybu, constatou que 4 em cada 10 crianças menores de 5 anos, apresentam concentrações de mercúrio acima de limites seguros em seus corpos, pela contaminação dos rios e dos peixes. Muitos dos impactos em sua saúde são irreversíveis. 


“Neste momento, o retrato das infâncias e adolescências indígenas brasileiras é composto por uma série de negligências, vulnerabilidades e violações de direitos”, diz Ana Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana e Conselheira do CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). Um dos motivos do avanço do garimpo ilegal sobre terras indígenas é nossa legislação permissiva, que não contribui para determinar a procedência do ouro extraído. Hoje, basta a pessoa que vende ouro declarar que o minério não foi extraído ilegalmente, e quem compra dizer que acredita na boa-fé dessa declaração. Pronto.

Garimpo ilegal viola o direito à vida e à saúde

“Não é razoável pressupor que baste uma declaração de boa-fé. Dados do mapbiomas mostram que o garimpo em terras indígenas aumentou 625% nos últimos 10 anos. A ilegalidade é generalizada e as consequências dessa atividade ilícita violam de forma sistemática direitos de crianças e adolescentes, como o direito à vida e à saúde, garantido pela nossa Constituição Federal”, diz Ana Cifali.


Foi por essa razão que o Instituto Alana solicitou ingresso como amigo da corte e apresentou memoriais, em parceria com WWF-Brasil, Defensoria Pública da União e Instituto Socioambiental (ISA), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7273, proposta pelos partidos PSB, Verde e Rede Sustentabilidade. A ação solicita que seja declarado inconstitucional o parágrafo 4º, do artigo 39, da Lei n. 12.844/2013, que institui a presunção de legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente (DTVMs).

Vitória para as crianças e adolescentes

Nesta terça, todos os ministros votaram unanimemente em favor da ação, que pede a suspensão do artigo e determina que a União adote medidas que inviabilizem a compra de ouro extraído de maneira ilegal. Com isso, a norma que permite a venda de ouro com base na ”boa-fé”, ou seja, sem fiscalização de sua procedência, será suspensa. E o poder executivo da União terá 90 dias para criar um novo marco normativo para a fiscalização do comércio de ouro, além de medidas legislativas, regulatórias e/ou administrativas que inviabilizem a aquisição de ouro extraído de áreas de proteção ambiental e de terras indígenas.


“É uma verdadeira tragédia o impacto da mineração ilegal na região amazônica, e é urgente a adoção de medidas para fazer cessar as inúmeras violências advindas dessa prática. Esse resultado é uma vitória para as crianças e adolescentes, especialmente para a população indígena. Ele, inclusive, se alinha aos marcos normativos nacionais e internacionais que determinam que, quanto mais vulnerável um grupo de crianças ou adolescentes for, mais prioritária deve ser a garantia dos seus direitos e a implementação de políticas públicas”, diz Ana.