Em Barcelona, brincar é coisa bem séria

Emma Cortés, que coordena o Programa Cidade Brincante, explica por que brincar deve ser tratado com tanto cuidado quanto a moradia ou a saúde quando se trata do desenvolvimento das crianças
A pedadoga e educadora social Emma Cortés, de Barcelona, uma mulhar branca, de cabelos castanhos e que está sorrindo

17 set Em Barcelona, brincar é coisa bem séria

Emma Cortés é pedagoga e educadora social. Ela fala rápido e parece ter pressa. Quer explicar muitas coisas. Ao longo da conversa, fica claro que a ansiedade é por fazer sua cidade, Barcelona, na Espanha, avançar. Atualmente, Emma coordena o Programa Cidade Brincante, uma iniciativa do Institut Infància i Adolescència. A entidade, financiada pela prefeitura do município, tem gestão e governança independentes, está vinculada à Universidade Autônoma de Barcelona e tem a missão de transformar a cidade em um lugar melhor para crianças e adolescentes.
“Partimos de uma ideia simples: brincar é um assunto bem mais estratégico do que parece. Tão sério que foi reconhecido como um direito humano na Convenção sobre os Direitos da Criança, que é o instrumento mais aceito da história universal, ratificado por 196 países. Está lá, no artigo 31: o brincar tem a mesma relevância para o desenvolvimento de uma criança que a moradia, a saúde ou a educação”, diz. Por isso, Barcelona decidiu levá-lo a sério — e depressa. Emma, que será uma das palestrantes convidadas para a Conferência Internacional Espaços Naturalizados para as Infâncias, de 20 a 23 de setembro, em São Paulo, explica as ações que a cidade espanhola está levando a cabo.

Por Carolina Tarrío

Qual é o trabalho do Institut Infància i Adolescència?

Nós realizamos pesquisas e desenvolvemos estratégias para avalizar políticas públicas baseadas em evidências. Eu cheguei aqui porque havia uma demanda do município para avaliar as áreas de brincar da cidade, e também de adequá-las a crianças com deficiência.

Como foi conduzido esse processo?

Em 2016, foi criado um grupo de trabalho transversal dentro da prefeitura, com equipes das áreas de Ecologia Urbana, Parques e Jardins, Segurança, Infância, Educação, Serviço Social e Comunitário e Mobilidade. Esse grupo analisou os espaços públicos para brincar na cidade, que incluíam 900 áreas exclusivas para esse fim. Constatamos que eram muito padronizados, pouco diversos, com pouca conexão com a natureza e desenhados principalmente para a segurança e manutenção da calma dos adultos, não aa as possibilidades de brincadeira. Paralelamente, fomos perguntar às crianças como estava o seu bem-estar e o que pensavam da cidade. Em 2017, realizamos uma pesquisa com 4 mil meninos e meninas.

O que a pesquisa mostrou?

Ouvimos crianças de 10 a 12 anos e metade delas não estava satisfeita com os espaços de brincar do seu bairro. Recolhemos também dados alarmantes: 4 em cada 10 responderam que não brincavam nem passavam tempo suficiente ao ar livre segundo os critérios “nunca”, “quase nunca” ou “apenas uma ou duas vezes por semana”. Ou seja, a estrutura da cidade não as convidava a sair, a se relacionar, a brincar na rua. As crianças usavam pouco o espaço público e, assim, perdiam todo o desenvolvimento que o brincar lá fora propicia. Vimos também que há um desafio enorme em aumentar o verde da cidade, bem abaixo do recomendado. E, ainda, que há desafios culturais: crianças e adolescentes com agendas cheias, passando muito tempo em frente às telas, em jogos on-line, e com pouca interação entre elas.

Quais foram os passos seguintes ?

Cruzando o diagnóstico com a pesquisa e com dados da área da saúde, mapeamos os desafios. Vimos que precisávamos olhar a cidade toda como espaço brincante, incluindo as praias, as ruas, os pátios, os entornos escolares, as praças e os parques, para não segregar as crianças em “espaços fechados de brincar”. E cuidar de questões que vão além da infraestrutura do brincar, como o trânsito, a poluição, a iluminação e a segurança. Entendemos que existe um desafio enorme de criar e manter áreas verdes que precisam de cuidados mais constantes. E também que é preciso comunicar às famílias a importância do brincar ao ar livre para o desenvolvimento das crianças, mudando a cultura, que vê o brincar como algo menor ou menos produtivo do que uma atividade extracurricular. Era preciso, também, criar uma cultura dentro do município para ouvir as crianças e desenhar os espaços com elas. Por isso, começamos a pensar em um ecossistema de brincar, ranqueando e desenhando os diferentes espaços que as famílias podem acessar dentro do seu bairro, com possibilidades diversas. Por exemplo, em um local elas podem praticar esportes porque tem uma quadra, em outro desfrutar de um piquenique e, em outro ainda, ter um brinquedo grande e muito legal. A partir desse levantamento dos desafios, criamos também uma série de indicadores e eixos que são utilizados para planejar melhor a cidade.

crianças brincam em um polvo gigante construído em Parc de la Pegaso, Barcelonaconstruído no

A que indicadores chegaram?

Há indicadores de infraestrutura lúdica, que levam em conta características dos espaços, como o tipo de solo, material, distribuição territorial, qualidade de suas estruturas e brinquedos. Determinamos, por exemplo, que os espaços devem incluir a possibilidade de brincadeiras diversas, com desafios, devem conter o máximo de atividades lúdicas em cada local, incorporar a topografia e os elementos naturais existentes como parte da brincadeira, contemplar diferentes gêneros, idades e também crianças com deficiência, devem conter elementos naturais, como areia e água, ser confortáveis, com sombra e elementos que facilitem o contato e o encontro, como espaços de piquenique, e fomentar brincadeiras colaborativas.
Também pensamos em programas para estimular o uso, propondo atividades ou testando estruturas móveis. E, ainda, focamos em comunicação, para mudar o olhar sobre o brincar. Para isso, buscamos ajuda da Sociedade Catalana de Pediatria e fizemos campanhas em escolas e nos próprios espaços públicos, mostrando o brincar ao ar livre como algo importante, explicando que o déficit de brincar livre e o déficit de natureza têm impactos na saúde física e mental das crianças. Todos esses critérios se tornaram uma política pública e, a partir de 2019, vêm sendo utilizados para desenhar e planejar as novas áreas criadas na cidade e para reformar as que existem, dentro de um Plano Municipal do Brincar, que olha a cidade como um todo e inclui pátios e entornos escolares, parques, praças e ruas.

Que propostas surgiram das crianças? Você acha que as pessoas têm repertório de uso do espaço urbano?

Em vez de lançar perguntas diretas, criamos uma metodologia que levasse as crianças a nos ajudarem a pensar, porque é difícil imaginar o que você não conhece. Em 2018, trabalhamos com 220 crianças para melhorar os espaços de brincar de dois parques. Começamos mostrando fotos, e elas tinham de escolher as três mais legais. A ideia era levantar o que gostam de fazer, nos indicando se queriam se molhar, se esconder, subir bem alto ou escorregar, por exemplo. Ou seja, mapeamos usos e atividades, mais do que equipamentos.
Mostramos também imagens de espaços que existiam ao redor do mundo. Elas escolhiam as três de que mais gostavam e explicavam por que tinham feito essa escolha, assim conseguimos entender o que valorizavam nessas referências. Só aí os arquitetos desenharam. Isso acabou traduzido na construção de uma baleia e um polvo gigantes nesses parques, que incluíram 16 elementos de melhoria apontados pelas crianças. Também usamos o urbanismo tático para fazer pilotos, criando carrinhos com objetos e elementos naturais, como livros, brinquedos e água, para conseguir testar e medir antes de implantá-los definitivamente.

Existe um indicador de acessibilidade? Como pensar os espaços para crianças com deficiência? Espaços naturalizados, por exemplo, nem sempre são acessíveis…

É difícil encontrar o equilíbrio entre a manutenção do verde e a acessibilidade. Temos um modelo para projetar áreas de jogos e brinquedos acessíveis. A lei determina que um a cada cinco brinquedos seja acessível. Avançamos no sentido de garantir que todas as atividades lúdicas possam ser executadas por crianças com deficiência. Por exemplo, se uma criança vai escorregar, uma criança com deficiência também deve poder escorregar, ou se balançar, etc. A questão é que as deficiências são de ordens muito diversas, uma coisa é um cadeirante e outra uma criança com autismo ou com deficiência mental. Para chegar nos modelos que estamos usando, trabalhamos com cerca de 20 entidades que atendem crianças com diferentes tipos de deficiência: cegos, surdos, com paralisia cerebral, autismo, entre outros.
Criamos o modelo com elas e com os técnicos da prefeitura, fazendo equivalências entre nossos indicadores e pensando em como fazê-los valer para essas crianças também. Elevamos os tanques de areia para que cadeirantes possam brincar. Também estamos trabalhando com uma universidade de Barcelona para explorar a parte sensorial dos parques para crianças com autismo. Está bem clara a contribuição de naturalizar os espaços e como isso beneficia essas crianças. É preciso planejar locais com menos estímulo, que permitam o recolhimento e a contemplação. Agora vamos começar a aplicar esse modelo em alguns pilotos.

Dois pontos citados por vocês são a construção de áreas de brincar mais naturais, que diminuam o nível de estimulação, e também de espaços desafiadores. Como sensibilizar os adultos para que entendam esses espaços?

Numa sociedade com aversão ao risco, onde tendemos a superproteger as crianças, não é tarefa fácil mesmo. Temos trabalhado na comunicação, transmitindo a importância do brincar para os adultos e informando que uma cidade melhor para as crianças é melhor para todos. Trabalhamos a importância social do brincar com a Sociedade Catalana de Pediatria, indicando que a redução do trânsito, a naturalização de espaços e o incentivo ao brincar livre trazem benefícios para a saúde. É mais fácil as pessoas entenderem a conexão com a saúde física e mental do que entenderem todos os benefícios educativos que há no brincar. Por vezes, as pessoas acham que a criança aprende mais com uma aula ou atividade extracurricular. A outra parte é dizer que as crianças têm direito ao espaço público tanto quanto os adultos.

Vamos treinar brincando, então: de que cor você acha que foi essa conversa?

VERDE! Porque verde é a cor da natureza e da esperança. Verde é a cor que dá lugar ao compartilhamento, a dividir ideias, e eu estou muito animada com o convite para participar da Conferência Internacional Espaços Naturalizados para as Infâncias, em poder contar o que temos feito e também trazer ideias pra cá. O verde pra mim é uma cor positiva, que gera bem-estar. Este foi um papo verde.